Vivemos um ponto de inflexão na governança global da inteligência artificial, que agora adentra o campo do direito internacional e da soberania estatal. As esperanças de uma regulamentação internacional unificada entre EUA e China se desvaneceram, revelando um nacionalismo da IA — fenômeno que, sob o prisma do direito comparado, pode ser benéfico se houver harmonização normativa.
O marco simbólico dessa mudança foi a derrota do campeão sul-coreano Go para o AlphaGo em 2016. A China, atenta ao impacto do evento, publicou sua estratégia nacional de IA visando ser o epicentro global da inovação em inteligência artificial até 2030. Os EUA reagiram em 2017, priorizando tecnologias emergentes para manter sua vantagem competitiva, identificando China e Rússia como desafios.
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Apesar de esforços globais por consenso, como a Cúpula AI for Good e os princípios da OCDE, as primeiras fissuras surgiram. Em Paris, Reino Unido e EUA se recusaram a assinar a “Declaração sobre IA Inclusiva e Sustentável”, alegando preocupações com excesso de regulamentação e segurança nacional. Essas divergências, mesmo entre aliados, evidenciaram a dificuldade em harmonizar abordagens regulatórias.
O imperativo jurídico da soberania digital brasileira
Para o Brasil, construir sua soberania digital é urgente e estratégico do ponto de vista jurídico-institucional. O país não pode se limitar à transposição de normas internacionais. O Marco Legal da Inteligência Artificial (Lei 14.533/2023) é um passo, mas carece de densidade normativa e mecanismos de jurisdição extraterritorial ou resolução de conflitos normativos.
A urgência se justifica: o Brasil corre o risco de ser refém de “forum shopping” regulatório e da aplicação subsidiária de legislações estrangeiras, comprometendo nossa autonomia jurídica. Do ponto de vista da teoria geral do direito internacional, desenvolver capacidades normativas em IA é crucial para preservar a igualdade soberana dos Estados. Outros países latino-americanos já o fazem.
A soberania digital brasileira não implica isolamento, mas a capacidade de atuar como sujeito ativo do direito internacional. Isso exige doutrina jurídica nacional sobre IA, precedentes judiciais consistentes, formação de juristas e uma política legislativa que transforme o Brasil em exportador de soluções jurídicas para a América Latina. A constitucionalização da proteção de dados pessoais (EC 115/2022) fornece bases sólidas para essa empreitada.
Divergências jurídicas: o choque de sistemas normativos
O nacionalismo da IA gera uma fragmentação normativa sem precedentes, onde diferentes tradições jurídicas criam marcos regulatórios incompatíveis. A União Europeia adota regulação ex ante baseada em risco (EU AI Act); os EUA preferem o common law e regulação ex post, com autorregulação setorial; já a China combina diretrizes técnicas nacionais com regulamentação administrativa centralizada. Essa fragmentação cria um “conflito de leis” global, com empresas multinacionais enfrentando obrigações contraditórias e o princípio da extraterritorialidade gerando tensões.
O Brasil deve navegar essas tradições sem perder sua autonomia normativa, desenvolvendo um marco legal compatível com a Constituição Federal, permitindo interoperabilidade com sistemas jurídicos estrangeiros.
Para isso, a estratégia deve ser sofisticada: construir capacidades normativas domésticas robustas e liderar iniciativas de harmonização legislativa Sul-Sul. O país pode se tornar referência em normas de IA para agronegócio, sustentabilidade e inclusão digital, gerando soft law exportável.
O desenvolvimento de tratados bilaterais, acordos de adequação e memorandos de entendimento pode criar um direito internacional da IA com características latino-americanas. O Brasil deve desenvolver jurisprudência nacional consistente, com varas especializadas, magistrados treinados e súmulas sobre temas controversos.
A governança climática oferece lições sobre como conciliar interesses divergentes por meio de princípios comuns. A governança da IA demanda criatividade similar para harmonizar soberania legislativa com direito internacional público. E o Brasil possui a tradição e expertise para ser um arquiteto dessa nova ordem, e deve seguir o modelo da teoria dualista moderada, preservando a supremacia da Constituição Federal.
O nacionalismo da IA é uma realidade jurídica que desafia o direito internacional. Para o Brasil, é uma oportunidade de quebrar a dependência normativa e emergir como potência jurídica digital regional. O desafio é transformar essa energia competitiva em vantagem legislativa, construindo um arcabouço normativo que preserve nossa soberania constitucional e projete influência jurídica internacional.
Do ponto de vista jurídico-institucional, o Brasil deve deixar de ser um mero receptor de normas. A construção de nossa soberania digital passa pela soberania normativa. A hora da ação legislativa e jurisdicional é agora.