Assimetrias no direito antitruste brasileiro

Recentemente, escrevemos um artigo sobre as desigualdades do direito antitruste no âmbito da atuação repressiva do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no combate a cartéis no Brasil. A pesquisa mapeou os casos de cartéis instaurados pelo Cade nos últimos oito anos, sendo constatado que menos de 1% desses casos são restritos à região Norte do Brasil.

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Esse diagnóstico, entretanto, não é novidade. Conforme pesquisa realizada por Peixoto (2017), no período de 2000-2013, apenas 1% do total dos casos de cartel diziam respeito à região Norte, enquanto 12% era referente à região Nordeste, 16% à região Centro-Oeste, 25% à região Sul e 29% à região Sudeste:

(…) a desigualdade é manifesta. Somadas as regiões sul e sudeste do país atinge-se, apenas nessas, o índice de 54% dos casos analisados pelo CADE no período, ao passo em que se somando as Regiões nordeste e norte, atinge-se somente o patamar de 13% dos casos. Além disso, houve 16% dos casos na região centro oeste, 12% de abrangência regional ou nacional e 1% em que não restou encontrado o chamado mercado relevante geográfico.

Ou seja, é possível observar que, há anos, a quantidade de investigações de cartéis na região Norte é significativamente inferior quando comparada às regiões Centro-Oeste e Sudeste, o que evidencia uma disparidade na atuação do Cade em âmbito regional. Essa discrepância revela a necessidade de uma reestruturação que permita uma fiscalização mais equitativa e descentralizada, assegurando que as práticas anticoncorrenciais sejam identificadas e combatidas com a mesma eficácia em todas as regiões do país.

Sendo assim, a partir da análise desses dados, buscamos levantar algumas hipóteses para tal discrepância, tais como: (i) peculiaridades na estrutura socioeconômica regional; (ii) transplante legislativo excessivo de doutrinas e legislações estrangeiras no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), que acabam prejudicando a construção de um sistema que dialogue com a realidade brasileira e (iii) carência de políticas institucionais, por parte do Cade, voltadas às regiões Norte e Nordeste, o que acentua o isolamento da matéria.

Quanto ao primeiro ponto, destaca-se que o Brasil, como um país extenso e multifacetado, se desenvolveu de forma desigual em seu território, sendo nítida as heterogeneidades que compõem as regiões brasileiras, o que justifica a preocupação da Constituição Federal de 1988 de se comprometer com a redução das desigualdades regionais e o incentivo ao desenvolvimento econômico sustentável.

Nesse contexto, Mendes (2020) demonstra que regiões menos desenvolvidas tendem a ter menor concorrência no mercado e menos incentivos de produção, o que dificulta a atuação do sistema jurídico, político e regulatório, bem como acentua a formação de cartéis, tráficos de influência e desrespeito às normas.

Já no que se refere ao segundo tópico, partimos do que Gal e Padilla (2010, p. 900), entendem como “fenômeno do seguidor”, fenômeno de modelação do direito antitruste a partir de um ordenamento estrangeiro, primeiramente via “transplante legislativo” – que consiste na reprodução da legislação positiva e do desenho institucional pelo país em desenvolvimento no momento da formulação da lei – e posteriormente via “transplante de interpretações da lei” – que se refere à importação de teorias estrangeiras sobre a finalidade e aplicabilidade da legislação concorrencial.

A formação do Direito Concorrencial brasileiro teve muita influência externa, muitas vezes com valores econômicos, políticos e sociais que não dialogam com a ideologia constitucionalmente adotada pela Constituição Federal de 1988.

Por fim, destacamos a atuação institucional limitada por parte do Executivo Federal no que se refere à expansão do Direito Antitruste para além do eixo Sudeste-Centro-Oeste. Com sede em Brasília, o Cade concentra suas operações predominantemente na região Sudeste, e a estrutura disponibilizada para o órgão revela-se limitada frente ao extenso leque de atribuições, já que o SBDC atua em todos os mercados relevantes sem distinções. Essa realidade limita o acompanhamento efetivo dos mercados e distancia a sociedade da autoridade antitruste, dificultando tanto a educação e conscientização dos cidadãos quanto a realização de denúncias.

Ademais, do ponto de vista acadêmico, a matéria “Concorrencial/Antitruste” pouco é lecionada nas universidades, sendo ainda mais escassa nas universidades situadas na região Norte. Em se tratando de disciplinas dos cursos de Direito, por exemplo, das sete universidades federais situadas nas capitais dos estados da região Norte, apenas a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) possui em sua grade curricular a disciplina de “Direito Econômico”, ofertada de forma optativa[1]. Apesar disso, o conteúdo programático da disciplina não faz referência a temas ligados ao direito concorrencial.

Além da ausência de disciplina nas universidades, também vale ressaltar a ausência de integração e diálogo entre o Cade e as autoridades locais para tratar sobre o tema. Nas pesquisas realizadas, não se encontrou nenhuma publicação que demonstre uma atuação institucional da autoridade antitruste por regiões, evidenciando a ausência de iniciativas em áreas mais remotas, como a região Norte, o que levanta questões quanto à abrangência e à efetividade da fiscalização concorrencial em todo o território nacional.

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É preciso se pensar, no Brasil, em formas de reduzir as barreiras que separam o direito concorrencial da dialética com a realidade brasileira, seja esta regional, política ou socioeconômica, e a autarquia desempenha um papel fundamental nesse processo. Ao adotar uma atuação mais sensível às desigualdades estruturais do país, o Cade pode contribuir não apenas para a promoção da concorrência em sentido estrito, mas também para a construção de um mercado mais justo, inclusivo e aderente às especificidades locais.

É inegável que o Cade possui uma função educativa, em muitos aspectos, eficiente. Cita-se, por exemplo, os cadernos da autarquia e os documentos de trabalho, bem como o Programa de Intercâmbio do Cade, a competição de estudantes como WICade e, ainda, o projeto intitulado Cade nas Universidades, que tem como objetivo aproximar a autoridade antitruste brasileira do meio acadêmico em diversas cidades do país. Busca-se, aqui, exatamente isso: formas de expandir tal atuação para compromissos de redução de assimetrias, por exemplo, por meio de oficinas temáticas, cadernos sobre o tema ou diálogos com as universidades.

Entretanto, tais iniciativas não têm se mostrado suficientes para reduzir as assimetrias no âmbito do combate a carteis da autarquia sob o ponto de vista geográfico-regional. A perpetuação desse cenário compromete os objetivos de uma política concorrencial democrática e verdadeiramente nacional, além de reforçar desigualdades históricas.

Portanto, é necessário que o Cade passe a incorporar estratégias territoriais proativas, voltadas especificamente para o enfrentamento das lacunas regionais em sua atuação preventiva e repressiva. Isso pode se dar, por exemplo, pela criação de núcleos regionais de apoio técnico, parcerias com instituições públicas locais e diálogo com outras instituições regionais.

Ainda, a criação de uma estrutura descentralizada, capaz de conectar a autarquia a órgãos locais, poderia fortalecer sua atuação em regiões mais remotas, como a região Norte. Essa iniciativa ampliaria a presença da autoridade de defesa da concorrência e possibilitaria a promoção de uma fiscalização mais próxima das dinâmicas regionais, além de incentivar uma maior participação da sociedade no tema.

Por fim, se a autarquia deseja se afirmar como promotora de um ambiente concorrencial saudável e inclusivo, é fundamental que amplie seus compromissos com a redução das desigualdades regionais, fortalecendo instrumentos de difusão do conhecimento, escuta ativa e atuação coordenada com instituições locais. Só assim será possível romper as barreiras que ainda separam o direito concorrencial das realidades concretas da maioria da população brasileira e promover um enforcement mais plural e comprometido com o desenvolvimento nacional.

[1] As informações obtidas são públicas e disponibilizadas pelo Ministério da Educação ou por suas estruturas auxiliares por intermédio de sítios eletrônicos na Internet.

Referências

MENDES, M. J. Desigualdade e Crescimento: uma revisão da literatura. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, ago/2013 (Texto para Discussão nº 131). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 1º ago. 2013.

PEIXOTO, Leonardo. Política de Defesa da Concorrência no Brasil e a Análise Comparativa das Regiões Nordeste e Sudeste: por um federalismo concorrencial. Tese Doutorado, Universidade Federal de Fortaleza/CE. Disponível em: http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/33694. Acesso em 31. Março, 2025.

SOUZA, WASHINGTON. Primeiras linhas de direito econômico. Imprenta: Belo Horizonte, Fundação Brasileira de Direito Econômico, 1977.

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