Aprovado na véspera do recesso do Congresso Nacional, no último dia 17/7, o Projeto de Lei 2159/21 institui um novo marco para o licenciamento ambiental no Brasil e, em linhas gerais, unifica normas e flexibiliza o processo pelo qual o poder público autoriza, além de controlar atividades que possam causar impacto ao meio ambiente. Desde a aprovação por 267 votos a favor e 116 contra na Câmara dos Deputados, ambientalistas e ativistas sociais têm feito um apelo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo veto ao texto do projeto, que passou a ser apelidado de ‘PL da Devastação’. Como já havia sido aprovado no Senado Federal, a proposta seguiu para sanção presidencial. O presidente Lula tem até o dia 8 de agosto para sancionar ou vetar o PL.
Durante uma participação em um evento de comemoração de um ano da Política de Manejo Integrado do Fogo, na última terça-feira (29/7), em Brasília (DF), a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, sinalizou que o presidente deve vetar alguns trechos do projeto. Segundo a ministra, a decisão do governo é no sentido de que “é preciso preservar o licenciamento ambiental”. Além disso, ela indicou que o Executivo estuda uma medida para substituir as mudanças na legislação, mas não se aprofundou em como a proposta será encaminhada.
Para especialistas ouvidos pelo JOTA, o veto integral da presidência da República ao texto do licenciamento ambiental poderia representar uma espécie de compromisso do governo com a agenda ambiental, mas ainda assim não resolveria o impasse em torno do projeto, já que o Congresso ainda pode derrubar o veto e transformar a proposta em lei.
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Na avaliação de Angela Barbarulo, gerente jurídica da Greenpeace Brasil, o veto integral não é um confronto ao Congresso, mas sim um dever de coerência com os compromissos climáticos e a voz da sociedade, visto que “o momento exige que o presidente use suas atribuições para reequilibrar a rota do país”. Além disso, Barbarulo considera que as justificativas que fundamentarem o veto de Lula poderão ser utilizadas como subsídio jurídico em eventuais ações judiciais, contribuindo para o debate qualificado do tema e para a defesa do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Por outro lado, ela destaca que a evidente inação do governo diante do projeto, mesmo com alertas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), evidencia “clara abdicação da agenda socioambiental em prol de outras pautas”. Segundo ela, a baixa disposição do Planalto em impor limites à tramitação acelerada e sem participação social do projeto pelo Congresso expôs a fratura entre “discurso e prática” na base governista. “Como não agiu a tempo, agora Lula herdou essa bomba relógio. Vetar integralmente não é só razoável, como significa priorizar o interesse nacional frente a lobbies míopes se não quiser sepultar seu legado climático”, declarou Barbarulo.
Nesse sentido, Daniel Ângelo Luiz da Silva, advogado especialista em Direito Ambiental do Escritório Galvão & Silva Advocacia, considera que o veto integral do presidente Lula ao PL do licenciamento ambiental seria apenas o início de um conflito institucional mais amplo. O advogado lembra ainda que o próprio Ministério do Meio Ambiente já indicou que levaria o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) ou que abriria uma disputa jurídica em relação à discussão.
Já Rafael Guimarães, sócio do Medina Guimarães Advogados e especialista em Direito Ambiental e Mudanças Climáticas pela PUC-SP, não crê que haja um veto integral de Lula ao projeto, visto que as aprovações no Legislativo ocorreram com ampla margem e que o veto presidencial possivelmente seria derrubado pelo Congresso posteriormente. Porém, destaca que a proposta possui falhas, como algumas delegações de competência ambiental aos estados e municípios, o que afrontaria dispositivos constitucionais, bem como algumas dispensas de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA).
Leonardo Roesler, advogado e conselheiro certificado pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), considera que a relativa discrição do Executivo diante do projeto não deve ser interpretada como falta de interesse, mas sim como um gesto estratégico que poderia sinalizar uma consonância de objetivos com o Congresso Nacional. Para ele, ao manter um perfil público moderado, o governo busca preservar capital político e, simultaneamente, “acompanhar a tramitação legislativa sem inflamar disputas ideológicas que atrasariam ainda mais a modernização do licenciamento”.
Assim, Roesler acredita que vetar integralmente o PL 2159/21 configuraria um “equívoco político e econômico de dimensão histórica”, pois ignoraria a “clara maioria qualificada no Congresso que se dispõe a restabelecer o texto”, assim como também transformaria o gesto presidencial em ato “meramente simbólico, corroendo capital político às vésperas da COP30“.
O que diz o PL do licenciamento ambiental
O projeto tramitou no Congresso por mais de 20 anos e já havia sido aprovado na Câmara em 2021.No Senado, a proposta foi aprovada em maio deste ano por 54 votos a 13, e voltou à Câmara após alterações feitas pelos senadores. Uma delas foi a criação da Licença Ambiental Especial (LAE) para “instalação e operação de atividade ou de empreendimento estratégico, ainda que utilizador de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente”.
A emenda ao texto de autoria do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), prevê que esse licenciamento será conduzido em procedimento monofásico, evitando a exigência de mais licenças distintas ao longo do tempo, simplificando o processo de licenciamento para essas empresas.
A discussão evidencia divergências entre setores empresariais e do agronegócio e ambientalistas. De um lado, o argumento é de que o regramento proposto pelo projeto é menos transparente e arriscado ao meio ambiente. Já os defensores da proposta defendem que uma lei geral proporciona maior segurança jurídica, assim como facilita o processo com a unificação de métodos e informações.
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Em sua redação, o projeto prevê que a condição para a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso, que funciona com uma autodeclaração de cumprimento dos requisitos ambientais, é que a atividade ou o empreendimento seja qualificado como de pequeno ou médio porte e baixo ou médio potencial poluidor. Sendo assim, a LAC poderá ser aplicada a obras de ampliação de capacidade e pavimentação em instalações já existentes ou em faixas de domínio e servidão, além de dragagens de manutenção e empreendimentos de saneamento básico.
A legislação aprovada prevê a dispensa do licenciamento para as atividades agropecuárias, caso as empresas atendam ao Novo Código Florestal e não ameacem a vegetação nativa. Também estão dispensadas as obras emergenciais ou que sejam realizadas em estado de calamidade pública.
Por fim, inclui os empreendimentos de segurança energética nacional no rol de atividades beneficiadas por procedimentos simplificados e prioridade para análise do licenciamento ambiental, desde que estejam previstos e contratados no planejamento e nas políticas energéticas nacionais. O trecho poderá beneficiar, inclusive, projetos de linhas de transmissão com licenciamento paralisado.
Principais mudanças e impactos regulatórios trazidos pela proposta
Na prática, Daniel Ângelo Luiz da Silva explica que o texto do PL do licenciamento ambiental limita a atuação de órgãos como Ibama, ICMBio e Funai. Além disso, a redação da proposta retira a obrigatoriedade de licenciamento em diversas atividades, assim como reduz a participação de comunidades afetadas e descentraliza normas para estados e municípios. Na avaliação dele, isso pode acabar gerando insegurança jurídica, enfraquecer a fiscalização ambiental e facilitar danos irreversíveis ao meio ambiente.
Rafael Guimarães entende que a principal mudança é a modificação da necessidade de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA) para uma Licença Ambiental Especial (LAE) para projetos estratégicos do governo federal, com um prazo de conclusão de um ano. Outras alterações interessantes, na visão do especialista, seriam a dispensa do EPIA, e consequente licença, para a reforma de rodovias, o que também ocorreria para as obras de saneamento básico até que se atinja a meta nacional, no caso de renovação de licenças — o que já ocorre no âmbito estadual, bem como no caso de reservas indígenas ainda não homologadas.
Do ponto de vista regulatório, Leonardo Roesler considera que a primeira alteração crucial reside na “clara repartição de competências que o projeto inscreve em lei, encerrando a prática, comum ao modelo vigente, de remeter um mesmo estudo de impacto a instâncias federais, estaduais e municipais em sucessão interminável”. A segunda mudança relevante, segundo ele, vem da unificação de atos administrativos em procedimento único, com a obrigatória publicação digital de todas as fases, condicionantes e relatórios de monitoramento.
“Tal centralização, ao converter o licenciamento em processo dotado de número único e tramitação exclusivamente eletrônica, garante publicidade integral, facilita o controle social e permite que, em sede judicial, cujo escrutínio é cada vez mais frequente, haja registro preciso de prazos, manifestações técnicas e contrapartidas pactuadas”, aponta.
Já para Angela Barbarulo, a proposta tende a intensificar o desmatamento justamente nas áreas mais sensíveis e ameaçadas ambientalmente do país, representando uma ameaça direta às unidades de conservação, às populações tradicionais e ao próprio funcionamento dos órgãos ambientais, que, segundo ela, terão sua atuação enfraquecida. Por isso, afirma que o PL 2159/21 representa uma “desestruturação significativa do regramento existente sobre o licenciamento ambiental no Brasil”, além de trazer riscos à segurança ambiental e social do país, assim como afronta diretamente a Constituição.
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De acordo com Barbarulo, o texto da proposta também viola o princípio da proibição do retrocesso ambiental, que vem sendo consolidado na jurisprudência brasileira, segundo o qual o Estado não pode adotar medidas que enfraqueçam direitos. Segundo a gerente jurídica da Greenpeace Brasil, ao permitir que a definição de atividades sujeitas ao licenciamento ambiental ocorra sem coordenação nacional e fora do âmbito de órgãos colegiados, como o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e os conselhos estaduais e municipais, o projeto pode promover a ação descoordenada entre União, estados e municípios no processo de licenciamento ambiental, e também desarticular os mecanismos de participação social.
Por isso, defende que “o PL é, por fim, omisso em relação à crise climática, sem sequer mencionar a questão em seu conteúdo, fazendo com que o processo de licenciamento desconsidere esse tema crucial”. Nesse sentido, pondera que a proposta terá impacto negativo para a gestão socioambiental, além de possivelmente provocar altos índices de judicialização, o que tornará o processo de licenciamento ambiental mais moroso e oneroso para a sociedade e para o Estado brasileiro.
Consonância com outros países
De acordo com os especialistas ouvidos, o licenciamento ambiental no Brasil, que vem a ser estruturado em três fases – licença prévia, licença de instalação e licença de operação – guarda semelhanças com os sistemas adotados em outros países, especialmente aqueles com legislações ambientais mais consolidadas, como a Alemanha, e também com países membros dos BRICS, por exemplo.
Apesar das especificidades de cada ordenamento jurídico, Barbarulo classifica que muitos países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, adotam modelos de licenciamento ambiental que contemplam fases semelhantes às do sistema brasileiro, abrangendo o planejamento, a instalação e a operação de empreendimentos com potencial impacto ambiental. “A Alemanha, por exemplo, exige licenças ambientais para atividades potencialmente poluidoras, geralmente concedidas por autoridades estaduais ou municipais, com base em diretrizes estabelecidas pelo Ministério Federal do Meio Ambiente”, ilustra a especialista.
De acordo com ela, estudos comparativos envolvendo os países do BRICS indicam que todos possuem sistemas formais de licenciamento ambiental, ainda que apresentem diferentes níveis de rigor, fiscalização e abrangência. Fora do bloco, Barbarulo diz que diversas legislações nacionais também exigem avaliações e estudos ambientais prévios como parte obrigatória do processo de licenciamento, reafirmando o caráter técnico e preventivo dessa ferramenta em escala global.
Já Silva também ressalta que alguns países adotaram medidas pontuais de desburocratização ambiental, como os Estados Unidos em governos voltados ao agronegócio. No entanto, segundo ele, a tendência global é justamente o contrário: reforçar a regulação ambiental com foco em sustentabilidade, participação social e metas climáticas. “O Brasil caminha na contramão do que defende em fóruns internacionais como a ONU e a COP”, diz.
Para Roesler, a experiência do Brasil comparada com países como Alemanha, Estados Unidos e Canadá demonstra que a arquitetura normativa que o país agora propõe não é “aventura isolada, mas mera atualização de padrões já sedimentados em economias maduras”, onde Estado e setor produtivo cooperam para “compatibilizar resguardo ambiental e competitividade”. Nessas jurisdições, ele considera que a imposição de prazos rígidos e a segmentação de procedimentos conforme o potencial de impacto representa a resposta racional à “velha armadilha burocrática que transforma licenças em sentença de morte para o investimento”.
‘Em ano de COP, aprovação do PL mancha a credibilidade dos esforços climáticos do Brasil’
A aprovação do projeto do licenciamento ambiental com ampla maioria na Câmara e no Senado ainda levanta uma outra discussão na visão dos especialistas: a imagem do Brasil perante a realização da Conferência do Clima (COP30), em Belém (PA), no mês de novembro.
Nesse contexto, Silva acredita que a aprovação do “apelidado PL da Devastação” compromete a imagem do Brasil principalmente diante da comunidade internacional. Na opinião do especialista, em um ano em que o país sediará a COP30, “a mensagem passada é de retrocesso ambiental, descompromisso com metas climáticas e fragilidade institucional”. Desse modo, ele acredita que essa discussão também pode impactar negativamente acordos comerciais, investimentos e até a reputação do Brasil como liderança ambiental.
Barbarulo vai na mesma perspectiva. Segundo a gerente jurídica da Greenpeace, a aprovação do PL 2159/21 em ano de COP 30 “mancha a credibilidade dos esforços climáticos do Brasil, convertendo pretensões de liderança em sinal de incoerência perante a comunidade internacional”. Por isso, ela considera que “vetar o PL reforçaria para o mundo todo o compromisso real do Brasil com a proteção da floresta e com o enfrentamento à crise climática”.
Para Guimarães, o Brasil, como o principal país em ativo ambiental do mundo, “possivelmente será alvo das mais variadas críticas em uma COP realizada em seu território diante do teor do projeto, mas principalmente em como ele vem sendo tratado”.
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Já Roesler diz que, no ano em que sediará a Conferência das Partes, o Brasil vislumbra a chance de “demonstrar que desenvolvimento econômico e proteção ambiental não são conceitos antagônicos, e sim complementares em uma agenda de prosperidade sustentável”. Para ele, a aprovação do PL 2159 se revela o instrumento legislativo capaz de conferir coerência a essa ambição, pois institui um sistema de licenciamento ambiental que “abandona a lógica punitiva e excessivamente burocratizada, herdada de décadas de sobreposição normativa, para adotar parâmetros objetivos de risco, prazos exequíveis e plena transparência”.
“Ao colocar em prática um marco legal que prestigia a eficiência administrativa sem sacrificar o rigor técnico, o país envia a mensagem inequívoca de liderança responsável, disposto a ser referência para nações em desenvolvimento que buscam conciliar crescimento, justiça social e conservação dos recursos naturais”, concluiu.