Alckmin, o vice ‘não decorativo’ de Lula

São Paulo, 25 de novembro de 2019. O programa matinal Aqui na Band anuncia seu quadro “E Agora, Doutor?”. Na tarja, lê-se: “Dr. Geraldo Alckmin demonstra como a acupuntura pode ajudar quem tem dor”. Trajando jaleco branco, na condição de médico do Hospital das Clínicas, o ex-governador e ex-presidenciável está prestes a espetar uma agulha entre o tornozelo e o tendão de Aquiles da estudante Stefane, deitada em uma maca.

“O melhor ponto para a lombar é o ponto ‘vesícula biliar 30’, que fica no glúteo. Mas, para não expô-la, nós vamos utilizar outros pontos”, explica, apontando para a região onde pretende perfurar a estudante. “Aqui, o ‘bexiga 60’. É uma picadinha, viu Stefane?”

Com 1,6 ponto no Ibope, segundo a imprensa na época, o programa perdeu em audiência até para a reprise do desenho animado Peppa Pig, exibido na TV Cultura.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Corta para 31 de julho de 2025, também na capital paulista. De terno cinza alinhado e camisa branca sem gravata, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) faz uma aparição no Mais Você, de Ana Maria Braga, na TV Globo. A participação, um dia após o tarifaço de Trump e no momento em que o governo Lula surfa na onda do nacionalismo, tem objetivo estratégico para a comunicação do governo federal: explicar à população a disputa comercial e política com a Casa Branca

“Geraldo Alckmin tira dúvidas sobre novas taxas”, exibe a tarja.

Há seis anos, a presença no matinal da Band escancarava o fundo do poço político de Alckmin. Ele havia amargado um quarto lugar na eleição presidencial de 2018, com pífios 4,76% dos votos. Traído por João Doria, eleito governador tucano tentando se colar ao bolsonarismo, perdera meses antes o controle do PSDB para o afilhado, que mal assumira o Bandeirantes e já se colocava como presidenciável. Governador de São Paulo por quatro mandatos, principal adversário de Lula em 2006, o médico de Pindamonhangaba parecia rumar para o ostracismo.

Mas ao aparecer na atração global, ao lado de Ana Maria, César Tralli e Louro Mané, a situação já era outra. Alçado à condição de vice-presidente, Alckmin havia sido nomeado por Lula “negociador-geral da República”, em meio à crise com Washington. Sua participação impulsionou a audiência do Mais Você, com média de 7,6 pontos e picos de 10 pontos na Grande São Paulo.

“Good cop”

Fruto de uma improvável articulação entre Fernando Haddad e o ex-deputado Gabriel Chalita, a vice na chapa de 2022 foi uma ressurreição política para Alckmin, ao mesmo tempo em que rendeu a Lula o discurso de que liderava uma “frente ampla” contra Jair Bolsonaro (PL). 

Ainda na transição de governo, ele recebeu de Lula também o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). E, nessa condição, foi destacado pelo presidente para liderar as negociações técnicas com o governo americano em torno do tarifaço. 

Sem canal direto com o Salão Oval, o petista assumia o discurso político em defesa da soberania nacional e de ataque ao clã Bolsonaro e ao presidente americano, chegando a chamar Trump de “imperador do mundo”. Em paralelo, Alckmin fazia o papel de “good cop” na crise, abrindo uma frente técnica de negociação com Washington e de diálogo com o setor privado

O vice-presidente chamou empresas para conversar e traçou com elas estratégias para que importadores americanos pressionassem a Casa Branca contra as tarifas. Recebeu representantes das big techs, pivôs do conflito com Trump juntamente com Bolsonaro. Um dos encontros teve a presença de integrante do Departamento de Comércio, a pedido do secretário Howard Lutnick, com quem ele vem dialogando há meses.

Nem mesmo o entorno de Alckmin consegue mensurar o peso de suas ações na decisão dos EUA de abrir uma lista de exceções à tarifa de 50%. Mas sua atuação cumpriu ao menos dois propósitos: um externo e outro doméstico. De um lado, sinalizou aos americanos disposição do Brasil para negociações comerciais e de conversar com as gigantes de tecnologia. De outro, buscou neutralizar o discurso da oposição de que o governo Lula não quer dialogar com a gestão Trump.

“Verba volant, scripta manent”

Se a inusitada composição Lula-Alckmin ajudou a atrair o eleitor médio, ela também provocou calafrios na militância em 2022. Quando houve o anúncio, ainda estava fresca a memória da conspiração de Michel Temer para derrubar Dilma Rousseff, em 2016. Com a presidente encurralada pelo Congresso e a Lava Jato, Temer anunciou a ruptura na célebre carta “verba volant, scripta manent” (“as palavras voam, a escrita permanece”), em que se queixava, entre outras coisas, de ser um “vice decorativo”.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

O petismo raiz temia uma repetição da história com Alckmin, um personagem da ala conservadora do PSDB. Mas presidente e vice desenvolveram desde a campanha uma relação de confiança e lealdade. A ponto de petistas no Planalto, em tom de brincadeira, se referirem a ele como “companheiro Geraldo”.

Peça-chave em 2022, Alckmin também terá um papel estratégico no tabuleiro do campo lulista em 2026. O presidente não tem objeções em mantê-lo na vice, mas cogita deslocá-lo para uma candidatura ao governo ou ao Senado por São Paulo. Lula ainda carece tanto de um palanque forte no estado como de uma candidatura viável ao Senado.

Se Tarcísio de Freitas for ungido pelo bolsonarismo para concorrer ao Planalto, aumentam as chances de esse movimento se concretizar. Alckmin já sinalizou disposição de ir para o sacrifício na difícil disputa contra o governador do Republicanos pelo Bandeirantes, embora prefira permanecer onde está, como o “vice não decorativo” de Lula.

Generated by Feedzy