Ordens Executivas de Trump: infralegalismo autoritário e erosão democrática

Nesta quarta-feira (30/7) Donald Trump assinou (mais) uma Ordem Executiva. Desta vez, o presidente estadunidense implementou uma tarifa adicional de 40% sobre o Brasil, elevando o total da tarifa para 50%[1].

O documento faz um ataque direto à soberania brasileira ao vincular a taxação extra à prolação de ordens judiciais que impediram a disseminação de discurso de ódio e fake news em plataformas digitais. A ordem de Trump chegou a citar nominalmente o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em um claro ataque à cúpula do Judiciário brasileiro e, consequentemente, à soberania brasileira.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Somente em 2025, Trump assinou Ordens Executivas determinando a deportação em massa de cidadãos estrangeiros de diversos países[2], iniciando a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde e do Acordo de Paris sobre o Clima[3] e restringindo substancialmente a ajuda humanitária e o financiamento a organizações internacionais[4]. Registre-se que todas essas “canetadas” autoritárias fragilizaram direitos sem qualquer participação prévia do Poder Legislativo federal estadunidense.

Trump, todavia, não é o único presidente que tem usado decretos para alterar o sentido de leis e promover reformas políticas sem o aval do Congresso. No Brasil, em seu primeiro ano no governo, o presidente Jair Bolsonaro editou 536 decretos e chegou a declarar que “com a caneta” tinha “muito mais poder” do que o presidente da Câmara dos Deputados.[5]

Bolsonaro utilizou decretos para efetivar medidas de grande repercussão, como alterar as regras sobre o uso de armas de fogo,[6] extinguir conselhos federais de participação social,[7] modificar a Lei de Acesso à Informação,[8] flexibilizar a cobrança de multas ambientais,[9] alterar a autoridade responsável pela concessão de florestas públicas[10] e incluir salões de beleza e academias como “atividades essenciais” durante a pandemia de Covid-19.[11] Bolsonaro recorreu a essa espécie normativa para implementar promessas de campanha e acelerar mudanças que deveriam passar pelo crivo prévio da Câmara e do Senado.

Embora sejam instrumentos normativos domésticos, esses atos unilaterais emitidos por presidentes e primeiros-ministros podem ter efeitos extraterritoriais consideráveis, com impactos diretos em outros países. Influenciam, globalmente, políticas relacionadas à proteção ambiental, imigração, comércio internacional, segurança pública e financiamento humanitário, especialmente quando proferidos por líderes de grandes potências econômicas. Podem, assim, fomentar violações de direitos humanos e liberdades fundamentais em outras nações, em um claro atentado à respectiva soberania e ao equilíbrio geopolítico mundial.

Nesse contexto, o uso excessivo e abusivo dos poderes unilaterais por chefes do Poder Executivo representa uma das principais ameaças contemporâneas ao constitucionalismo e ao princípio da separação dos poderes.[12] Líderes populistas como Trump têm usado sua autoridade normativa de maneira arbitrária e oportunista, de forma a buscar a expansão de suas prerrogativas e impor políticas públicas a despeito da vontade do Legislativo.

Utilizam, assim, decretos e Ordens Executivas para burlar o processo legislativo ordinário, engrandecendo o Executivo em detrimento dos demais Poderes e desrespeitando princípios basilares do direito internacional.[13]

O uso abusivo desses atos unilaterais não apenas subverte o sistema constitucional de separação de poderes, como também confere ao líder executivo um “controle direto e completo sobre o Poder Legislativo”,[14] situação perigosa que a ordem constitucional-democrática procura evitar. Nessa perspectiva, a “melhor maneira de nos protegermos de normas arbitrárias e tirânicas é exigindo que os agentes públicos permaneçam fiéis ao processo legislativo democrático delineado na Constituição”.[15]

É preciso lembrar, afinal, que a cúpula do Executivo costuma ser altamente centralizada, controlada por pessoas do mesmo partido político ou até mesmo por pessoas com nenhuma ligação partidária, que agem de forma completamente deferente ou subserviente à vontade do presidente ou primeiro-ministro. Nessa cúpula, raramente há membros da oposição ou pessoas com opiniões claramente contrárias à do presidente ou primeiro-ministro.

Esses atos unilaterais, nesse contexto, não resultam de ampla deliberação ou de compromissos entre forças políticas colidentes, mas são frutos de discussões e debates entre pessoas que, em linhas gerais, pensam igual. Decretos de alto teor político, assim, acabam ingressando no mundo jurídico e produzindo todos os seus efeitos sem a saudável e necessária discussão e supervisão prévias de outros agentes políticos.

Tais atos representam, assim, um grande desafio para a teoria democrática. Permitir que líderes do Executivo inovem na ordem jurídica e legislem sozinhos, criando direitos e obrigações, contraria o princípio da separação de poderes e a moldura que constituições democráticas criam para o Poder Executivo. Concentrar a elaboração de atos normativos de ampla relevância política nas mãos de uma só pessoa envolve um alto risco democrático.

O procedimento unilateral de elaboração de políticas pelo Executivo deve, portanto, se dar de forma comedida, em situações e com propósitos específicos, dentro dos limites legais e constitucionais, não devendo ser utilizado por líderes autoritários e populistas como subterfúgio para implementar, a fórceps, promessas de campanha.

Vale destacar, ainda, que há uma estreita relação entre o uso frequente de decretos e os fenômenos do “constitucionalismo abusivo”, termo cunhado por David Landau para identificar medidas que, embora formalmente legais e constitucionais, acabam ferindo a própria ordem democrática de um país.

Em suas palavras, o “constitucionalismo abusivo” consiste no “uso de mecanismos de mudança constitucional para tornar um estado significativamente menos democrático do que era antes”.[16] Para ele, práticas constitucionalistas abusivas podem gerar constituições que formalmente parecem democráticas, mas que são autoritárias quanto à maneira como as instituições funcionam na prática.[17]

Apesar de Landau tratar de casos que envolvem uma emenda à própria Constituição, suas considerações são importantes para ilustrar os riscos do uso abusivo de qualquer ferramenta normativa, inclusive decretos e Ordens Executivas.

Por sua vez, Mark Tushnet usa a expressão “jogo duro constitucional” para designar práticas políticas – legislativas ou executivas – que estão dentro dos limites da doutrina e da prática constitucionais, mas são utilizadas para fraudar a Constituição e enfraquecer adversários políticos.

Joseph Fishkin e David Pozen ressaltam que “uma manobra política pode ser caracterizada como jogo duro constitucional quando viola ou estica em demasiado uma competência ou norma constitucional com fins partidários”.[18]

Também Steven Levitsky explica que o “jogo duro constitucional é usar as instituições como arma política contra seu oponente. Usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei. É fruto da polarização, quando os dois lados começam a temer e desprezar o outro, passam a lançar mão de qualquer meio necessário para impedir que o outro vença”.[19]

Na mesma linha, o chamado “infralegalismo autoritário” refere-se ao fenômeno em que uma agenda política autoritária é criada por meio da emissão de normas secundárias, como decretos, portarias e regulamentos administrativos. Tudo com o objetivo de erodir ou neutralizar vários direitos e valores estabelecidos pela Constituição e apoiados por pressões parainstitucionais sobre os agentes públicos.[20]

Nesse cenário, chefes do Executivo editam decretos que, a pretexto de regulamentar leis, as contradizem e descaracterizam políticas públicas. A judicialização desses decretos e atos secundários pode ser dificultada pela estratégia do Executivo de revogar frequentemente seus atos e, em seguida, emitir outros semelhantes. A cada novo ato, a tentativa de processar pode ser frustrada, e uma nova ação deve ser ajuizada no tribunal.[21]

Observa-se, assim, que instrumentos normativos secundários, constitucionalmente previstos, têm sido usados de forma abusiva para minar sistemas democráticos. A preocupação atual dos constitucionalistas deve se concentrar em presidentes e primeiros-ministros que usam instrumentos previstos no próprio sistema jurídico para obter mais poder.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

Por meio da emissão constante de decretos – instrumentos aparentemente de menor valor normativo – toda uma burocracia estatal pode se tornar subserviente às diretrizes de um líder potencialmente autoritário.

Em suma, o uso frequente de decretos de grande repercussão política, social e econômica para fugir do Congresso pode dar origem a um processo de grave erosão democrática. Esses atos têm um escopo estrito, e seu alcance não deve ser alargado para servir como instrumento de manobra política de presidentes que não querem ter diálogo com o Congresso.

O passado ditatorial do Brasil e de outros países justifica um grande temor em relação aos atos unilaterais de presidentes e primeiros-ministros e uma valorização extra do sistema de freios e contrapesos e do Poder Legislativo. Somente uma intensificação do controle de líderes autoritários por parte do Judiciário doméstico, das cortes e organizações internacionais, do Legislativo, da mídia e da sociedade civil pode impedir essa expansão e normalização de “canetadas” autoritárias.

[1] The White House. “Fact Sheet: President Donald J. Trump Addresses Threats to the United States from the Government of Brazil. July“ 30, 2025.

[2] The White House. “Protecting the American People Against Invasion.” January 20, 2025.

[3] The White House. “Withdrawing the United States from the World Health Organization.” January 20, 2025.

[4] The White House. “Reevaluating and Realigning United States Foreign Aid.” January 20, 2025.

[5]  Pronunciamento de Jair Bolsonaro durante o lançamento da Frente Parlamentar Mista da Marinha Mercante Brasileira, ocorrido em Brasília em 28 de maio de 2020 (FERNANDES, Talita. Bolsonaro diz ter-mais-poder-que-maia-por-ter-caneta-para editar decretos. Folha de S.Paulo, São Paulo, 28 maio 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/bolsonaro-diz-ter-mais-poder-que-maia-por-ter-caneta-para-editar-decretos.shtml. Acesso em: 7 jun. 2020).

[6]  O presidente brasileiro Jair Bolsonaro expediu 7 decretos regulamentando o Estatuto do Desarmamento e dispondo sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo: decretos nº 9.844/2019, 9.845/2019, 9.846/2019, 9.847/2019, 9.785/2019, 9.797/2019 e 9.981/2019. Desses, foram revogados os decretos nº 9.844/2019, 9.785/2019 e 9.797/2019.

[7]  Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, e Decreto nº 9.812, de 30 de maio de 2019.

[8]  Decreto nº 9.690, de 23 de janeiro de 2019.

[9]  Decreto nº 9.760, de 11 de abril de 2019, e Decreto nº 10.198, de 3 de janeiro de 2020.

[10] Decreto nº 10.347, de 13 de maio de 2020.

[11] Decreto nº 10.344, de 11 de maio de 2020.

[12] PORFIRO, Camila Almeida. Executive Dominance in Times of Crisis: Governing by Decree and the Pandemic. Routledge: 2025 ; PORFIRO, Camila. Governando por decreto: a atividade legislativa do Poder Executivo em tempos de crise. Belo Horizonte: Ed. Arraes, 2024; PORFIRO, Camila. Decretos Presidenciais: limites constitucionais e dimensões de controle 2 Ed. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2024; BRANUM, Tara L. President or King – The Use and Abuse of Executive Orders in Modern-Day America. Journal of Legislation, v. 28, 2002, p. 1-86; DODDS, Graham G. Take up your pen: Unilateral Presidential directives in American politics. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2013; CAREY, John M.; SHUGART, Matthew Soberg. Poder de decreto: Chamando os tanques ou usando a caneta? Op. Cit.; COOPER, Phillip J. By order of the president: Administration by executive order and proclamation. Administration & Society, v. 18, n. 2, p. 233-262, 1986; DODDS, Graham G. Take Up your Pen: Unilateral Presidential Directives in American Politics. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2013; MAYER, Kenneth R. With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power. Princeton: Princeton: Princeton University Press, 2002.

[13] BRADLEY, Curtis A.; POSNER, Eric A. Presidential signing statements and executive power. Constitutional Commentary, v. 23, p. 359, 2006.

[14] BRANUM, Tara L. President or King: The Use and Abuse of Executive Orders in Modern-Day America. Journal of Legislation, v. 28, 2002, p. 21, tradução livre.

[15] BRANUM, Tara L. President or King: The Use and Abuse of Executive Orders in Modern-Day America. Journal of Legislation, v. 28, 2002, p. 33, tradução livre.

[16] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. U.C. Davis Law Review, v. 47, 2013, p. 7, tradução livre.

[17] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. Op. Cit., p. 65.

[18] FISHKIN, Joseph; POZEN, David E. Asymmetric Constitutional Hardball. Columbia Law Review, New York, v. 118, n. 3, p. 915-982, 2018, tradução livre.

[19] BBC NEWS. Steven Levitsky: Why this Harvard professor believes Brazilian democracy is at risk. 19 Oct. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45829323.

[20] VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Supremocracia e Infralegalismo Autoritário: o comportamento do Supremo Tribunal Federal durante o governo Bolsonaro. Novos Estudos CEBRAP, Brasília, DF, v. 41, p. 592, 2023.

[21] Id.

Generated by Feedzy