Securitização: o ‘pré-sal’ do orçamento e da infraestrutura

Enquanto o Brasil busca saídas para reativar investimentos sem comprometer as finanças públicas, um novo horizonte surge no debate: a securitização de créditos públicos e o uso das contas “escrow”.

Com a recente Lei Complementar 208/2024, o país pode estar prestes a desvendar um potencial financeiro comparável ao pré-sal para a economia brasileira, transformando ativos “empoçados” em recursos para infraestrutura, como ferrovias, mobilidade e saneamento, entre outros. Estima-se que o estoque de créditos públicos, como a dívida ativa, supere os R$ 5 trilhões.

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Mesmo com um deságio conservador de 90% — reflexo da baixa expectativa de recuperação de parte desses valores —, a cifra remanescente de R$ 500 bilhões representa um lastro robusto para projetos de grande envergadura.

Apesar do volume expressivo, esses ativos públicos ficam “submersos”, sem gerar valor para a sociedade. A securitização — ou seja, a transformação desses créditos em ativos financeiros negociáveis — permitiria a disponibilização presente destes recursos financeiros, criando liquidez para a realização de investimentos ou da estruturação de veículos e mecanismos que possam alavancá-los.

A securitização, prática já consolidada no setor privado via Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), permite antecipar essas receitas futuras, gerando liquidez imediata.

O conceito, embora novo para a gestão de créditos internos, remete aos “Brady Bonds” dos anos 1990, que utilizaram contas “escrow” (garantidas, na tradução livre) para renegociar a dívida externa brasileira, resgatando a credibilidade do país. Agora, a Lei Complementar 208/2024 pavimenta o caminho, classificando a securitização como alienação de ativos, e não operação de crédito, o que observa a responsabilidade fiscal.

A Lei Complementar 208 é simbólica no contexto das finanças públicas. Representa a única mudança democrática realizada pelo Congresso Nacional na emblemática Lei 4.320, de 1964, que regulamenta os orçamentos públicos das três esferas: União, estados e municípios. Nasceu do PLS 204, apresentado pelo então senador José Serra (PSDB-SP) em 2016, e consumiu oito anos de debates intensos nos Poderes Legislativo e Executivo.

A nova Lei Complementar 208 instrumentaliza uma estratégia fiscal que permite alavancar investimentos privados em infraestrutura monetizando ativos públicos. Ou seja, não eleva a dívida pública e não promove aumento da carga tributária. Neste contexto, as contas “escrow”, vinculadas a projetos de infraestrutura, representam um mecanismo que podem destravar as operações de securitização com créditos públicos, a partir de governança já consagrada nos setores público e privado.

As contas “escrow” – oferecidas por grandes bancos a clientes privados – se destacam como um instrumento-chave, permitindo vincular receitas futuras a projetos específicos. Gerenciadas por agentes fiduciários ou fundos garantidores, com supervisão dos tribunais de contas, esses instrumentos oferecem segurança jurídica aos investidores e previsibilidade de pagamento para governos, tornando as concessões e PPPs mais atraentes.

A recente regulamentação da Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhada dos Tabelionatos de Protesto (Cenprot), pela Corregedoria Nacional de Justiça, reforça esse cenário. Os tabelionatos de protesto poderão, além da cobrança extrajudicial, atuar como possíveis depositários e fiduciários da exigibilidade de créditos inadimplidos, conectando o Poder Público ao mercado financeiro e agilizando a cobrança de dívidas.

A implementação desses mecanismos pode redesenhar o Pacto Federativo, dando maior autonomia a estados e municípios para investir, mesmo em cenários de restrição orçamentária. Isso abre portas para parcerias mais robustas com o setor privado, sem a necessidade de endividamento tradicional. Cabe ressaltar que estados e municípios não podem se endividar emitindo títulos públicos, o que torna a securitização um instrumento mais valioso no contexto das finanças estaduais e municipais.

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Trocando em miúdos, a securitização de créditos públicos é uma oportunidade concreta para o Brasil repensar como financiar a infraestrutura e os demais projetos estruturantes. Enquanto muitas vezes se debate o financiamento público como um jogo de soma zero, a securitização de créditos mostra que há valor a ser extraído de ativos já existentes — basta organizá-los, precificá-los corretamente e dar segurança jurídica ao processo.

A securitização e as contas “escrow” não são soluções mágicas, mas representam uma oportunidade concreta para o Brasil repensar o financiamento de sua infraestrutura. Em um país com vasta necessidade de investimento e um enorme estoque de créditos a serem explorados, a chave está em organizar, precificar e dar segurança jurídica ao processo. Como o pré-sal, trata-se de um recurso que já existe. Falta apenas perfurar o solo institucional e extrair seu potencial transformador.

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