Terá Lula o mesmo destino dos liberais na Austrália e no Canadá? Desde o início da guerra comercial de Trump 2, foram esses os países cujos resultados eleitorais teriam sido alterados a favor de forças políticas que, embora contestadas domesticamente, acabaram por se beneficiar do chamado efeito “Rally ‘round the flag”, ou seja, o apoio ao governo de plantão contra o que é percebido como uma agressão estrangeira.
No entanto, todos esses três casos, que são comparáveis ao Brasil por serem regimes federativos, não desfrutam do alto grau de polarização que permeia nossa sociedade há quase uma década. Portanto, o presidente Lula (PT) ainda terá muito o que fazer para converter em votos os efeitos do tarifaço dos EUA contra o Brasil, previsto para ter início a partir desta sexta-feira (1º/8).
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Não basta se demonstrar mais competente que eventuais adversários para negociar uma saída para a crise. É preciso ganhar a guerra de narrativas que, na era das redes sociais, tornou-se um território incerto mesmo para quem detém a caneta e a força da máquina governamental.
Consideremos o contexto em que Lula ganhou seu terceiro mandato: a inépcia do governo de Jair Bolsonaro (PL), que buscava a reeleição, em combater a pandemia de Covid-19 saiu relativamente barata para o hoje ex-presidente inelegível. Afinal, ele perdeu por uma diferença de menos de dois pontos percentuais para o atual ocupante do Palácio do Planalto.
Sem dúvida, contribuiu para tal resultado a ficha corrida de Lula, que tinha sido preso em 2018 por acusações de corrupção no contexto da Operação Lava Jato. Dito isso, é notório que um número significativo de eleitores outrora centristas fez um ranking de preferências no qual mais importava impedir o retorno do petista, cujas condenações foram anuladas por falhas processuais, do que tolerar na chefia da nação alguém que já demonstrava reiterados pendores golpistas e cujas decisões e insensibilidade legaram 700 mil mortos durante a pandemia.
Numa era em que o empreendedorismo virou palavra de ordem para eleitores das mais diversas classes sociais, não me surpreenderei se qualquer noção de soberania e respeito à nação esteja entre as preocupações do eleitor médio. Diferentemente do Brasil, Austrália e Canadá não possuem movimentos de extrema direita significativos na arena político-partidária. Com isso, os liberais, que representam a centro-esquerda em cada um desses países, conseguiram capitalizar com relativa facilidade a raiva contra Trump.
No Brasil, para além daqueles que por ignorância ou má-fé insistem que o Brasil não negociou o suficiente — como se possível fosse negociar sua própria soberania —, há entre o eleitorado quem enxergue Trump como um salvador dos desmandos do sistema (representado sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal) e os EUA como modelo de nação a ser seguida.
São pessoas que até podem sentir no bolso os efeitos do tarifaço, que são de fato sanções contra um país que ousa pela primeira vez em sua história julgar e condenar golpistas em vez de anistiá-los em troca de um muito provável golpe futuro. As sucessivas anistias ocorridas entre os anos 1930 e 1950 incluíram vários dos que cerraram fileiras para a derrubada de João Goulart em 1964 no começo da ditadura militar.
Já tinha alertado à época da fuga de Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em março passado, que o embate do bolsonarismo não é contra figuras como Lula e Alexandre de Moraes. Trata-se de uma guerra contra o Brasil construído a partir de 1930, evidente sobretudo na contestação de uma noção de identidade nacional fundamentada na valorização do sincretismo, a qual acabou servindo de estratégia para superar o famoso “complexo de vira-lata” que tanto nos assola.
Na atual conjuntura, parece-me adequado reproduzir um parágrafo do texto em que fiz o referido alerta. Intitulado “Eduardo Bolsonaro articula com trumpistas o fim do Brasil dos últimos 100 anos”, foi publicado nesta coluna em 24 de março de 2025. Seu subtítulo é “deputado se faz de vítima ao se licenciar do mandato e cria base para golpe a partir dos EUA”: “Reeleito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump busca claramente formar uma nova ordem internacional em que seu populismo de direita e supremacismo branco seja um dos polos globais num mundo a ser dividido com China e Rússia onde, porém, Washington ainda se manteria como centro do capitalismo global, com a hegemonia do dólar”.
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Não é coincidência, portanto, que o maior elo entre os Bolsonaro e Trump seja o mentor intelectual dessa nova ordem, o supremacista branco Steve Bannon. Ele teria sido quem convenceu o presidente americano a condicionar qualquer negociação na seara comercial ao fim do que a extrema direita rotula de caça às bruxas ao pai de Eduardo.
Sai a valorização do sincretismo e entra um nacionalismo cristão com tons de supremacia branca. Sai o Brasil soberano e entra um Estado vassalo a Trump. Eis o muito provável resultado para nós se Lula não for bem-sucedido em fazer com que a maioria dos eleitores brasileiros siga a lógica que levou australianos e canadenses a confiarem na centro-esquerda para defender suas respectivas nações do imperialismo trumpista.