Com a iminência do tarifaço pelos Estados Unidos, o governo brasileiro estuda medidas para contra-atacá-las, implementando tarifas recíprocas com fundamento na Lei de Reciprocidade Econômica (Lei 15.122/2025) e, no seu regulamento (Decreto 12.551/2025).
Ao que parece, essas tarifas foram anunciadas ao mesmo tempo da cúpula dos Brics e da validação de outras questões econômicas/geopolíticas relevantes para os países do Sul Global pelos Brics.
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Esse é o caso, por exemplo, do corredor bioceânico Brasil-Peru, a nova multipolaridade monetária (desdolarização), da potencial rediscussão das regras distributivas dos acordos para evitar a dupla tributação (que hoje privilegiam países desenvolvidos) na Convenção-Quadro da ONU sobre Cooperação Tributária Internacional (FCITC)[1] etc.
O governo federal tem escutado os setores prejudicados e avaliado medidas alternativas para além da retaliação tarifária. Aqui, daremos ênfase às tarifas e à tributação das big techs.
Potenciais tarifas a serem impostas pelos EUA
Em 9 de julho, o presidente Donald Trump anunciou tarifas de 50% sobre produtos brasileiros importados aos EUA em razão de “condutas anticomerciais” brasileiras, sendo que alguns dias antes, tinha anunciado tarifas adicionais de 10% para os países do BRICS. Somando essas duas alíquotas, as tarifas poderiam chegar a 60%.
Em 15 de julho, o Escritório do Representante do Comércio dos EUA (USTR[2]) anunciou uma investigação de medidas comerciais brasileiras “injustas” para empresas americanas com base na Seção 301 da Lei de Comércio de 1974, quais sejam:
Comércio e serviços locais de pagamento eletrônicos (Pix);
Preferências tarifárias aplicáveis a outros países como, por exemplo, México e Índia;
Fragilidade na aplicação de normas anti-corrupção;
Insuficiência no combate à pirataria e streaming ilegal;
Abandono da isenção de tarifas para o etanol americano e
Desmatamento ilegal.
Essa não é a primeira investigação do USTR contra o Brasil instaurada em um governo Trump. Vale lembrar que, em 2020, houve uma investigação contra alguns projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional[3]. Esses projetos visavam a introdução de Digital Service Tax (DST) no país, com o objetivo de tributar plataformas digitais no país. Essa investigação foi suspensa pois nenhuma lei foi aprovada.
Alternativas na OMC e medidas de assistência às empresas brasileiras
Caso as tarifas venham a ser aplicadas, uma das alternativas do Governo brasileiro é recorrer ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, apresentando denúncia formal às medidas americanas. Não se pode esquecer que há uma paralisia no mecanismo de solução de disputas da OMC causada pelo próprio governo americano, que criticou a forma de organização do órgão e a implementação de medidas favoráveis à China.
Essas discordâncias remontam ao governo Obama. Desde então, os EUA têm se recusado a nomear membros para o Órgão de Apelação da OMC, o que bloqueou a sua operação[4].
Como alternativa, 26 países[5] estabeleceram, em março de 2020, um sistema de apelação para disputas comerciais, o chamado Acordo Provisório de Arbitragem de Apelação Multipartes (MPIA[6])[7]. Os EUA não aderiram ao MPIA, de forma que, nesse estágio, é pouco provável que um futuro caso seja levado à OMC com uma solução satisfatória.
O Governo brasileiro cogita criar medidas de assistência às empresas domésticas, tais como linhas de crédito específicas, mecanismos de reintegração tarifária, promover o acesso à mercados substitutos e outras medidas de incentivo à manutenção de empregos.
Tributação das big techs
Um dos principais pontos de discussão levantados pelos EUA como fundamento das tarifas é a tributação das plataformas digitais introduzidas por diversos países, que são tidas como discriminatórias às big techs americanas.
Embora esse tema não tenha sido levantado expressamente na investigação do USTR (exceto pelo eventual prejuízo às plataformas de pagamento das redes sociais), fato é que as medidas discutidas na OCDE (Pilares I e II, que realocam competência tributária aos mercados consumidores) e na ONU (nos protocolos antecipados da FCITC para a tributação de serviços digitais transfronteiriços) estão no escrutínio do Governo americano.
Nessa conjuntura, a eliminação dos DSTs virou instrumento de barganha para a negociação das tarifas americanas. De um lado estão as incertezas quanto à continuidade do Pilar II após a conferência do G7; de outro, os BRICS apoiam o Protocolo Antecipado da FCITC.
Nesse cenário, o deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) apresentou Projeto Complementar de Lei 157/2025 instituindo a Contribuição Social Digital (CSD, que inclui um mecanismo chamado de “Pix das big techs”) incidente sobre receita bruta das atividades de publicidade digital (ads) e venda ou transferência de dados gerados por usuários localizados no Brasil, ou deles coletados durante o uso de uma plataforma digital. A alíquota proposta seria de 7% aplicável somente às plataformas com receita bruta global superior a R$ 500 milhões.
Os recursos arrecadados com a CSD seriam destinados:
25% para o Fundo Nacional de Cuidados Digitais, visando fortalecimento da aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados e iniciativas de integridade da informação e combate à fake news e auditorias independentes de plataformas digitais que manipulem dados de usuários para impulsionamento e publicidade segmentada;
25% para Fundo de Infraestrutura Digital Inclusiva, visando o desenvolvimento de infraestrutura pública e tecnologia local de dados e
50% a ser devolvida aos usuários pessoas físicas brasileiras de plataformas digitais, como um mecanismos de remuneração pelos dados extraídos e transferência de renda aos usuários (mecanismo entitulado “Pix das big techs”).
Ou seja, 3,5% da receita bruta seria destinada aos fundos mencionados pelo projeto e 3,5% seriam repartidos entre os usuários brasileiros das big techs, com a manutenção da gratuidade das plataformas.
A CSD proposta pelo deputado Boulos tem alguma semelhanças com o modelo de DST, introduzidos em diversos países do mundo (como Reino Unido, França, Canadá, Itália, Índia etc.) e o modelo da União Europeia assim como com outros tributos que foram objeto de projetos de lei apresentados ao Congresso Nacional nos últimos anos[8].
A instituição de um DST no Brasil vai na contramão das medidas adotadas por países que negociam o relaxamento de tarifas. Esse é o caso, por exemplo, do Reino Unido, Canadá e Índia, que parecem ter afastado ou cogitam afastar a exigência do tributo durante as negociações com os EUA (pelo menos por ora).
Além disso, sob o ponto de vista técnico, a introdução de DST pode gerar inúmeros problemas práticos, como a dúvida quanto a aplicação dos acordos para evitar a dupla tributação[9], a negativa de crédito tributário no país da matriz dos grupos multinacionais[10], o aumento do preço do serviços para usuários, entre outros.
No entanto, não se pode negar que a introdução de lei semelhante no contexto da negociação de tarifas com os EUA pode servir como instrumento de barganha tal como demonstra a experiência internacional.
Próximos passos desse jogo geopolítico
O Brasil não é um país com baixo nível de tarifas. Pelo contrário, ainda que tenhamos visto uma tendência de liberalização[11] no governo Collor após o Consenso de Washington[12], o país impõe barreiras tarifárias em diversos setores econômicos, com vistas a privilegiar o mercado doméstico.
Esse é o melhor cenário para o desenvolvimento econômico do país? Intuitivamente, a resposta parece ser não. Curiosamente, estudos econômicos recentes[13] demonstram que as tarifas do passado foram benéficas à difusão tecnológica local. Isso nos revela que, na iminência de uma guerra comercial provocada pelos EUA, é hora de o Brasil avaliar as suas peças no tabuleiro desse jogo geopolítico, considerando desde a política comercial e industrial até a tributação das big techs.
[1] No original, em inglês, Framework Convention on International Tax Cooperation. Sobre o assunto: SCHOUERI, Luís Eduardo. The UN Framework Convention: A Once-in-a-Lifetime Opportunity. Intertax, v. 53, n. 6/7, p. 492-493, 2025. Disponível em: https://schoueri.com.br/wp-content/uploads/2025/07/LES-The-UN-Framework-Convention.pdf. Acesso em 24 jul. 2025; MIYAKE, Alina. Recent Developments in the Taxation of Cross-Border Services: LATAM Position(s) on the UN Terms of Reference (ToR). 10 jul. 2025. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=5350884. Acesso em: 24 jul. 2025.
[2] No original, em inglês, United States Trade Representative.
[3] Referente ao Projeto de Lei nº 2.358/2020 e Projetos de Lei Complementar nº 131/2020 e 218/2020.
[4] United States refusal to appoint members renders WTO Appellate Body unable to hear new appeals. American Journal of International Law, Cambridge, v. 114, n. 2, p. 273–274, abr. 2020. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/american-journal-of-international-law/article/us-refusal-to-appoint-members-renders-wto-appellate-body-unable-to-hear-new-appeals/AAEE87FF75E27F33F58A4CCC33D97A11. Acesso em: 24 jul. 2025.
[5] Esse é o caso de Austrália, Benim, Brasil, Canadá, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Equador, Filipinas, Guatemala, Hong Kong, China, Islândia, Japão, Macau, China, Malásia, México, Montenegro, Nicarágua, Noruega, Nova Zelândia, Paquistão, Paraguai, Peru, Reino Unido, Singapura, Suíça, Ucrânia, União Europeia e Uruguai.
[6] No original, em inglês, Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement.
[7] PAUWELYN, Joost. The WTO’s Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement (MPIA): What’s New? World Trade Review, Cambridge, v. 22, n. 5, p. 693–701, dez. 2023. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/world-trade-review/article/wtos-multiparty-interim-appeal-arbitration-arrangement-mpia-whats-new/B279E8A106380A510AAA28F4E1A4130F. Acesso em: 24 jul. 2025.
[8] Por exemplo: Projetos de Lei nº 2.358/2020, 3.887/2020, 640/2021 e 1.068/2025 e Projetos de Lei Complementar nº 131/2020, 218/2020 e 241/2020.
[9] CUI, Wei. The Digital Services Tax on the Verge of Implementation. Canadian Tax Journal / Revue fiscale canadienne, Toronto, v. 67, n. 4, p. 1135–1152, 2019. Disponível em: https://www.ctf.ca/common/Uploaded%20files/Documents/CTJ%202019/Issue%204/1135_2019CTJ4-Sym-Cui.pdf. Acesso em: 24 jul. 2025.
[10] AVI-YONAH, Reuven S. Should Digital Services Taxes Be Creditable? Tax Notes, Arlington, VA, 11 mar. 2024. Disponível em: https://www.taxnotes.com/featured-analysis/should-digital-services-taxes-be-creditable/2024/03/08/7j7s0. Acesso em: 24 jul. 2025.
[11] MOREIRA, Mauricio Mesquita. Brazil’s Trade Policy: Old and New Issues. Washington, DC: Inter-American Development Bank, dez. 2009. (IDB Working Paper Series; n. IDB-WP-139). Disponível em: https://www.usitc.gov/research_and_analysis/documents/Moreira-Brazils_Trade_Policy__Old_and_New_Issues.pdf. Acesso em: 24 jul. 2025.
[12] TANZI, Vito. Taxation in Latin America in the Last Decade. Washington, DC: International Monetary Fund, dez. 2000. (Working Paper n. 76). Disponível em: https://kingcenter.stanford.edu/sites/g/files/sbiybj16611/files/media/file/76wp_0.pdf. Acesso em: 24 jul. 2025.
[13] DE SOUZA, Gustavo; GAETANI, Ruben; MESTIERI, Martí. More Trade, Less Diffusion: Technology Transfers and the Dynamic Effects of Import Liberalization. Chicago Fed Working Paper, n. 2024-20, set. 2024 (rev. mar. 2025). Chicago: Federal Reserve Bank of Chicago, 2024. Disponível em: https://www.chicagofed.org/publications/working-papers/2024/2024-20. Acesso em: 24 jul. 2025.