Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, em voto do relator, o ministro Dias Toffoli, reconheceu a repercussão geral para o recurso extraordinário com agravo (ARE 1.542.420) interposto por Roberto Carlos e os herdeiros de Erasmo Carlos em litígio entre os compositores e a editora Fermata que decorreu de contratos celebrados entre os anos de 1964 a 1987.
O caso em questão evocou uma vez mais as dificuldades inerentes aos julgamentos que envolvem não apenas celebridades, mas celebridades reconhecidamente estimadas há muitos anos pelo público. Mostrou também a dificuldade de bem aplicar normas gerais que deveriam ser observadas por todos, notadamente aqueles que devem servir como referência em sua atividade profissional, na qual o talento deve ser celebrado, mas deve igualmente exigir moderação e análise prévia nas pretensões deduzidas perante o Poder Judiciário.
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Sustentam os compositores que o litígio estaria relacionado à validade de contratos celebrados antes das inovações tecnológicas atuais, em especial os que envolvem as plataformas de streaming. Eles defendem a adoção de critérios diversos daqueles que nortearam as mídias físicas como LPs, CDs ou DVDs em cessões que remontam às décadas de 1960 e 1980.
Ainda que tais argumentos fossem válidos, é oportuno frisar que cessões são transferências definitivas das obras criadas. O caso concreto – para aqueles que tiveram a curiosidade de consultar os autos – traz contornos extremamente benéficos aos autores que levaram em conta sua vontade ao autorizar ou não o uso das obras e possibilitaram ainda recebimento periódico de valores a cada nova contratação pela editora com terceiros.
Assim sendo, a interpretação restritiva não se confunde com a vedação da cessão desde que esta tenha sido suficientemente informada e consubstanciada em cláusulas suficientemente claras e benéficas aos autores. Há direito de rescisão somente quando há prejuízo aos autores, o que não foi o caso.
Desde logo, frisamos que há muitos anos atuamos em questões relacionadas aos direitos autorais, tanto na advocacia como na academia, defendendo um enfoque protetivo em relação aos autores e titulares de direitos conexos. A esse respeito, seguimos as lições de Silmara Juny de Abreu Chinellato, professora titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que nos orientou durante o mestrado e o doutorado e com quem trabalhamos há muitos anos na instituição mencionada.
A menção que efetuamos à ilustre professora decorre do fato de sua conhecida lição de que “o autor é um trabalhador” foi transcrita no voto do ministro Toffoli proferido em 22 de maio passado, no recurso extraordinário com agravo (ARE 1.542.420), quando reconheceu a repercussão geral do caso.
Todavia, apesar da inequívoca clareza e importância de tal lição, consideramos prudente assinalar que a mesma professora, analisando o caso concreto, elaborou um parecer para a Editora Fermata. No parecer, Silmara Chinellato esclareceu muito bem a relevância da manifestação de vontade dos compositores nos contratos celebrados e sua adequação às normas do Código Civil de 1916, em vigor no momento da celebração do primeiro contrato, bem como das Leis 5.988/73 e 9.610/98, que versam sobre direitos autorais.
Em seu parecer, a professora diferenciou os contratos que envolvem a cessão definitiva dos contratos de mera edição, uma vez que naqueles há uso livre da obra e transferência definitiva, além do pagamento pela exploração econômica da obra.
É relevante a ocorrência da suppressio, que é a perda de um direito devido ao fato de não ter sido exercido por um longo tempo causando a impressão ao outro contratante de que não mais o direito seria exercido, o que impede a rediscussão do contrato, até porque estaria caracterizado um comportamento contraditório dos compositores, uma vez que – por mais de 50 anos – houve o recebimento de valores periódicos sem qualquer questionamento, concluindo Silmara Chinellato pela validade e eficácia dos contratos, pois a editora agiu de boa-fé.
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Os compositores receberam – e continuam a receber – valores periódicos por sua utilização e são consultados quanto ao seu uso, o que constitui uma liberalidade da cessionária, uma vez que a cessão possibilita, como bem assinalou a professora, o uso livre da obra pela editora e deveria ser prestigiado o ato jurídico perfeito, que foi consagrado constitucionalmente por meio do art. 5º, XXXVI como cláusula pétrea.
A constatação de que a vontade dos compositores não poderá violar o ato jurídico perfeito nem constituir um comportamento contraditório, uma vez que o contrato foi considerado satisfatório durante anos pelas partes, inclusive no que diz respeito às mídias digitais, não conflita em nenhum momento com a admiração pelo trabalho desenvolvido durante décadas por Erasmo e Roberto Carlos. Ambos são reconhecidos no exterior e considerados como os mais bem-sucedidos compositores em nosso país, responsáveis pela criação de inúmeras obras musicais que permanecem em nossa memória coletiva.
O Judiciário manteve correto distanciamento de tais aspectos e analisou o caso tecnicamente tanto em primeira instância como no Tribunal de Justiça de São Paulo. Também por unanimidade, decidiu favoravelmente à editora no Superior Tribunal de Justiça, pois não descuidou do fato de que prestigiar uma concepção protetiva dos autores não permite desconsiderar a validade dos contratos para restringir a exploração econômica das obras. O equilíbrio é essencial para difundir a arte, sem comprometer a confiança nas relações jurídicas que erodiria a sustentabilidade do setor cultural.