Antes do recesso parlamentar, o governo federal divulgou um conjunto de medidas econômicas voltadas ao atingimento das metas fiscais para 2025, que incluiu contingenciamento de despesas e aumento de tributo.[1] Entre as iniciativas adotadas estava o aumento no Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários, o IOF.
O meio escolhido foi a elevação das alíquotas do imposto por meio de decreto. Primeiro, o presidente da República editou o Decreto 12.466, de 22 de maio de 2025, para elevar o imposto devido em diferentes operações financeiras, como e.g. as aplicáveis aos planos de previdência complementar VGBL, às remessas de recursos para conta do contribuinte brasileiro no exterior e às operações de crédito para pessoa jurídica. A medida, segundo o governo, contribuiria para “alcançar o objetivo de consolidação fiscal”, por meio de um incremento na arrecadação da ordem de R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 2026.
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Horas depois, diante da repercussão negativa da medida, o governo revogou o decreto. Em seu lugar, editou o Decreto 12.467, de 23 de maio de 2025, que, entre outras medidas, restabeleceu a alíquota zero de IOF sobre aplicação de investimentos de fundos nacionais no exterior e manteve em 1,1% a alíquota aplicável às remessas ao exterior, em vez de 3,3%, como inicialmente previsto. A estimativa de arrecadação com a elevação do tributo foi reduzida para R$ 19 bilhões.
Novamente pressionado, o governo editou um terceiro Decreto, revisando as alterações em matéria de IOF. O Decreto 12.499, de 11 de junho de 2025, reduziu a alíquota aplicável ao crédito à pessoa jurídica de 0,95% para 0,38%. Foi mantida, no entanto, a elevação de alíquotas de IOF aplicáveis em diferentes operações, como no caso das cooperativas tomadoras de crédito e do crédito à pessoa jurídica, inclusive as do Simples Nacional, bem como a previsão de cobrança de IOF nas operações de financiamento e antecipação de pagamentos a fornecedores – chamadas “forfait” ou “risco sacado” –, uma inovação que não parece encontrar lastro nas leis tributárias em vigor.
As medidas não foram bem recebidas no Congresso Nacional. O Legislativo federal posicionou-se contra a elevação de carga tributária e manifestou descontentamento em relação ao instrumento jurídico utilizado, que dispensa apreciação parlamentar. A reação transcendeu os discursos e ganhou forma jurídica no Decreto Legislativo 176, de 26 de junho de 2025, que sustou os três Decretos Presidenciais, com fundamento na competência prevista no art. 49, V, da Constituição Federal.
O embate entre Poderes, como sói ocorrer, chegou ao Supremo Tribunal Federal. Foram ajuizadas inicialmente três ações diretas: a ADI 7.827, pelo Partido Liberal; a ADI 7.839, pelo Partido Socialismo e Liberdade; e a ADC 96, pelo presidente da República. Em seguida, foi proposta mais uma, a ADC 97, subscrita por oito partidos políticos. Todas as ações são de relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A tabela a seguir sintetiza as informações:
Ação
Requerente
Objeto
ADI 7827
PL
Decreto 12.466, de 2025
Decreto 12.467, de 2025
ADI 7839
PSOL
Decreto Legislativo 176, de 2025
ADC 96
Presidente da República
Decreto 12.499, de 2025
Decreto Legislativo 176, de 2025
ADC 97
União Brasil, Avante, Podemos, PRD, PP, PSDB, Republicanos e Solidariedade
Decreto 12.466, de 2025
Decreto 12.467, de 2025
Decreto 12.499, de 2025
Decreto Legislativo 176, de 2025
A princípio, o relator concedeu medida cautelar monocrática para suspender os efeitos dos três Decretos Presidenciais mencionados, bem como do Decreto Legislativo 176/2025. Designou também audiência de conciliação no STF, um convite às instâncias políticas ao diálogo. A tentativa, contudo, não se mostrou integralmente exitosa na audiência.
Então, o ministro Moraes alterou a cautelar anteriormente concedida. Determinou ad referendum do plenário que o Decreto 12.499, de 2025, recobrasse sua eficácia (ex tunc), exceto quanto aos dispositivos – i. e. art. 7º, §§ 15, 23 e 24, do Decreto 6.306, de 2007 – que instituíam sem base na lei a incidência do imposto sobre as operações de “risco sacado”, os quais continuaram suspensos.
Manteve, por outro lado, a suspensão do Decreto Legislativo 176, de 2025, do Congresso, ressalvada apenas a sustação dos dispositivos relativos à tributação das operações de “risco sacado”, acima mencionadas. O alcance da decisão, no entanto, precisou ser esclarecido para afastar a exigência das alíquotas majoradas do IOF durante a suspensão da eficácia do decreto presidencial. O referendo da cautelar e o mérito das ações ainda aguardam julgamento no plenário do STF.
Apresentados os embates políticos e as decisões judiciais, vamos aos fundamentos da controvérsia constitucional. A competência para “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” está prevista no inciso V do art. 49 da Constituição Federal.
“Exorbitar” é exceder, ultrapassar limites. São duas hipóteses previstas no art. 49, V, da Constituição. A sustação pode recair sobre: (1) “os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar” ou (2) “atos normativos do Poder Executivo que exorbitem dos limites de delegação legislativa”.
Na primeira hipótese, o limite é dado pela própria Constituição e pela disciplina estabelecida na lei. Os decretos e os regulamentos expedidos pelo Executivo servem à “fiel execução” da lei (art. 84, IV, CF 88). Na segunda, o limite é posto na delegação conferida pelo Legislativo, espécie legislativa praticamente em desuso atualmente (art. 59, IV, CF 88).
Com algum esforço de simplificação, podemos dizer que a competência para sustar os atos normativos do Poder Executivo, prevista no art. 49, V, da Constituição, é um instrumento de controle de constitucionalidade político repressivo de que dispõe o Congresso. É meio para preservar suas atribuições institucionais e restaurar o equilíbrio entre os Poderes, sempre que o Executivo ultrapassar as balizas de suas atribuições institucionais, invadindo a seara legislativa.
Foram, contudo, raros os atos normativos do Poder Executivo sustados com base nesse instrumento. Levantamento realizado pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados aponta a existência de mais de 1.500 projetos de decreto legislativos em tramitação propondo a sustação dos mais variados atos normativos do Executivo, entre e.g. decretos, resoluções e portarias. No Senado, esse número ultrapassa as duas centenas. Já os decretos legislativos efetivamente aprovados pelo Congresso não chegam a uma dezena nem costumam ter por objeto a sustação de decretos presidenciais.[2]
É natural que seja assim. Do ponto de vista político, a aprovação de um decreto legislativo para sustar um ato normativo importante do Executivo, como um decreto presidencial, é sinal de alguma instabilidade na relação com o Congresso. Indica ainda que outros mecanismos políticos informais – tais como discursos, conversas, apelos e recomendações – falharam antes.
No caso concreto em análise, chama atenção o quórum de aprovação do Projeto de Decreto Legislativo 214, de 2025. Dos 481 deputados presentes na sessão, foram 383 votos favoráveis e 98 contrários. No Senado, a proposição foi aprovada por votação simbólica.
De todo modo, é forçoso reconhecer que a controvérsia atual a respeito da majoração do IOF não se resume à interpretação do art. 49, V, da Constituição. É preciso considerar sobretudo a regra do art. 153, § 1º, da CF, segundo a qual “É facultado ao Poder Executivo […] alterar as alíquotas dos impostos”, desde que “atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei”.
No caso do IOF incidente sobre valor das operações de crédito e relativos a títulos e valores mobiliários, por exemplo, a Lei 8.849, de 1994, fixa, no art. 1º, caput, alíquota máxima de 1,5% ao dia. O § 2º do mesmo artigo autoriza o Executivo a “alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal”. A competência do Executivo deve, portanto, respeitar o limite do caput do art. 1º e o objetivo do § 2º, isto é, “as condições e os limites estabelecidos em lei”, na forma do § 1º do art. 153 da Constituição.
Não se trata de uma competência privativa do presidente da República. O Executivo pode modificar a alíquota nas condições e nos limites estabelecidos na lei – isto é, abaixo da lei. Não pode ir além, não pode exceder as condições e os limites legais. O Congresso, por sua vez, pode ele mesmo estabelecer a alíquota do imposto? Sim, pode. Pode alterar a lei, estreitando a margem de discricionaridade da alteração da alíquota? Sim, também pode.
Por que essa previsão existe? Porque é vedado “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (art. 150, I, CF 88). Ou seja, a regra do art. 153, § 1º, traz uma exceção – ou mitigação, como se prefira – à exigência de lei, em sentido formal, para discriminar todos os critérios da regra matriz à incidência tributária. A alíquota pode ser alterada por decreto, observado o que a lei determina.
Há uma razão por detrás dessa peculiaridade na regra de competência do art. 153, § 1º: a necessidade de se ter um regime tributário mais flexível, em matéria de IOF, para intervir, a título de indução, e.g. no mercado de câmbio, crédito etc. Trata-se de um imposto especialmente apto – aptidão extrafiscal, diríamos[3] – a servir de instrumento de política monetária, ou seja, como meio para interferir no mercado de crédito, câmbio, seguro ou no mercado de títulos e valores mobiliários.
A doutrina dá o nome de “extrafiscalidade” a essa situação. Aliás, essa e outras tantas do mundo jurídico, nas quais os fins ou os efeitos dos tributos são especialmente importantes, porque utilizados com função diversa da ordinária, isto é, da arrecadação.
Diz-se, então, que o IOF seria um “imposto extrafiscal”, porquanto seu objetivo não seria exclusivamente arrecadatório, mas também “regulatório” – preferimos dizer “indutor”. E para induzir comportamentos de forma eficiente, nessas hipóteses, não se pode esperar noventa dias ou o próximo exercício financeiro, tampouco o tempo e o trâmite usual do processo legislativo do Congresso.
Em outras palavras, a finalidade indutora do IOF justifica a exceção estabelecida na regra de competência do art. 153, § 1º. E, além de induzir comportamentos, também, arrecada? Sim, é claro. As finalidades convivem; os efeitos, também. Fala-se, então, em finalidade predominante, não exclusiva. Mas esse é um elemento propriamente jurídico – e, portanto, sindicável do ponto de vista judicial – ou apenas uma consideração de natureza política que serve para explicar a razão de ser da norma?
Aqui está outro aspecto fundamental do caso: a interpretação e, especificamente, o controle de constitucionalidade de uma norma jurídica a partir de sua finalidade extrafiscal. A jurisprudência do STF reconhece que o controle sobre fins e efeitos das normas jurídicas é viável. O tribunal já o admitiu em diferentes oportunidades.
Normas tributárias extrafiscais – isto é, indutoras – devem ser interpretadas levando-se em conta este aspecto, que não fica imune ao controle judicial, inclusive no âmbito do controle abstrato, seja e.g. na forma de controle de proporcionalidade, prognose legislativa ou desvio de finalidade – noções que não se confundem, vale dizer. Tal entendimento foi reafirmado pelo relator no caso do IOF, embora tenha afastado a ocorrência de desvio de finalidade diante dos elementos do caso concreto.
É bem verdade que aferir a finalidade de uma lei não é tarefa nada fácil. Obviamente não se resume à análise das razões que se declaram em exposições de motivos ministeriais ou justificações de proposições legislativas. Mas, com todas as vênias que a academia permite: se esse é um argumento que autoriza a declaração de inconstitucionalidade pela via da ação direta, por que não justificaria a sustação de atos normativos que exorbitem do poder regulamentar nos termos do art. 49, V, da Constituição?
[1] “O governo cumpriu em 2024 a meta proposta e aprovou no Congresso Nacional dois pacotes de gastos. Em 2025, o Ministério da Fazenda segue com ações para alcançar o objetivo de consolidação fiscal, como o decreto que altera o IOF. As mudanças somam esforços para o equilíbrio fiscal, focando na uniformização e correção de distorções. Elas contribuem para harmonização da política fiscal com a monetária, buscam reduzir a volatilidade cambial, e, com isso, criam condições para trazer maior estabilidade macroeconômica e favorecer investimentos de longo prazo no país. Assim, as alterações auxiliarão o atingimento das metas fiscais para 2025, assim como contribuem com os esforços do Banco Central em acomodar a dinâmica do mercado de crédito a fim de assegurar a convergência da inflação à meta. Ou seja, é um aprimoramento que promove estabilidade fiscal, com harmonização de política econômica e racionalidade, para fortalecer a economia brasileira.” BRASIL. Ministério da Fazenda. Equipe econômica divulga contingenciamento, bloqueio e medida para ajuste fiscal. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/Maio/equipe-economica-divulga-contingenciamento-bloqueio-e-medida-para-ajuste-fiscal.
[2] Vide lista: Decreto Legislativo 273, de 2014, que susta a Resolução – RDC 52, de 6 de outubro de 2011, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa; o Decreto Legislativo 424, de 2013, que susta os efeitos da Resolução 23.389, de 9 de abril de 2013, expedida pelo Tribunal Superior Eleitoral, declarado inconstitucional no julgamento da ADC 33, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, juntamente com a referida Resolução, nas ADIs 4.947, 5.020 e 5.028, do mesmo relator; Decreto Legislativo 177, de 2017, que susta o art. 1º e o parágrafo único do art. 2º da Portaria 1.253 de 12 de novembro de 2013 do Ministério da Saúde; Decreto Legislativo 293, de 2015, que susta os efeitos da Portaria Interministerial 192, de 5 de outubro de 2015, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente; Decreto Legislativo 170, de 2018, que susta a Portaria Interministerial MDIC-MMA 78, de 29 de dezembro de 2017; Decreto Legislativo 26, de 2021, que susta os efeitos da Resolução 23, de 18 de janeiro de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; Decreto Legislativo 79, de 2022, susta a Portaria 377, de 8 de julho de 2020, da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Economia; Decreto Legislativo 25, de 2021, que susta os efeitos do art. 38 da Portaria GM/MS 1.263, de 18 de junho de 2021.
[3] CORREIA NETO, Celso de Barros. O Avesso do Tributo. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2016.