A tutela jurídica do solo à luz da Constituição e da legislação infraconstitucional

Por força legal, o solo é considerado um recurso ambiental, como previsto nos termos do artigo 3º, V, da Lei 6.938/1981, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Logo, não resta dúvida de que sua proteção está implícita no conceito holístico do artigo 225, da Constituição Federal de 1988, que assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental. 

Isso impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Essa proteção requer um manejo compatível com sua aptidão, capacidade de uso e resiliência, orientado pelos princípios da sustentabilidade e sustentado por uma governança ambiental eficaz.

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Além da previsão constitucional, dispomos de um robusto arcabouço infraconstitucional que determina a conservação do recurso natural solo, ainda que de forma indireta ou genérica. A exemplo disso, citam-se a Lei Federal 12.651/12 (artigo 1º, parágrafo único, inciso I), a Lei Federal 8.171/91 (artigo 48, inciso III), a Lei Federal 4.504/64 (artigo 89), dentre outras. Todas reconhecendo a necessidade de preservação do solo no contexto da sustentabilidade da produção rural.

O solo provê diversas funções ecossistêmicas e serviços ambientais capazes de suprir as necessidades humanas, como a produção de alimentos e o estoque de carbono. Entretanto, raramente o solo tem sido objeto de proteção jurídica com base em sua natureza ambiental autônoma e indispensável. 

O uso antrópico do solo sem critérios técnicos de resiliência e sustentabilidade leva – de acordo com a própria Lei Federal 6.938/81 – à sua degradação, potencializando efeitos como erosão, compactação, perda de fertilidade, assoreamento de cursos d’água e poluição – todos caracterizados como formas de dano ambiental pela legislação brasileira.

O artigo 3º, incisos II e III da PNMA, define com clareza os conceitos de degradação e poluição, incluindo impactos negativos sobre o solo. De acordo com essa norma, considera-se degradação toda alteração adversa das características do meio ambiente, enquanto a poluição e o dano ambiental abrangem, entre outros aspectos, os impactos negativos sobre o solo.

Mesmo que a erosão seja considerada um processo natural, segundo os conceitos agrônomos, quando agravada ou amplificada pela ação humana, ela é capaz de alterar negativamente as propriedades do solo e comprometer suas funções essenciais, configurando-se como degradação ambiental.

O Censo Agropecuário de 2017, do IBGE, indicou que o Brasil tem 159 milhões de hectares – aproximadamente 45% de toda área produtiva –  ocupados por pastagens. Ou seja, o número de hectares destinado à pecuária corresponde a quase metade de toda a matriz produtiva. Desses, segundo estimativas da Embrapa, mais de 100 milhões de hectares apresentam algum grau de degradação. Esse é, hoje, o maior passivo ambiental do país.

Essa realidade impõe importantes desafios ao Estado brasileiro e, em especial, ao Ministério Público, cuja atuação na proteção do meio ambiente está fundamentada na responsabilidade civil objetiva, nos termos da teoria do risco integral.

Sob essa perspectiva, é suficiente a comprovação do nexo de causalidade entre a conduta e o dano ambiental, sendo dispensada a demonstração de culpa. Trata-se de um importante instrumento de tutela jurídica do solo, que fortalece a atuação resolutiva do Ministério Público na reparação de danos e na prevenção da degradação ambiental.

Afinal, diante do cenário atual, não seria mais adequado, eficiente e ambientalmente justo priorizar a restauração de áreas rurais degradadas, reintegrando-as ao sistema produtivo, ao invés de permitirmos novos desmatamentos?

A moratória do desmatamento – medida já adotada por outros países e discutida no Brasil – torna-se mais factível e juridicamente sustentada quando há alternativas concretas de expansão da produção sem necessidade de supressão de vegetação nativa.

Essa lógica de racionalização do uso do território encontra respaldo na Constituição Federal, em diversas normas infraconstitucionais e, mais recentemente, no Decreto Federal 11.815/2023, que instituiu o Programa de Conversão de Pastagens Degradadas.

Para enfrentar esse desafio, o Ministério Público de Minas Gerais, por meio da 1ª Promotoria de Justiça de Uberaba, e com o apoio de instituições de ensino superior, desenvolveu o Sistema de Apoio no Diagnóstico de Pastagens Degradadas (Sipade). É uma iniciativa inédita que tem como objetivo atuar na tutela jurídica do solo, possibilitando sua defesa direta através da atuação do Ministério Público. 

A ferramenta permite diagnosticar, por sensoriamento remoto, diferentes estágios de degradação de pastagens com base no Índice de Vegetação por Diferença Normalizada (NDVI), obtido por meio de imagens do satélite Modis. O sistema fornece um indicativo de degradação, dentro de uma matriz prévia, que divide a pastagem em quatro cenários:

pastagem sadia;
pastagem com presença de plantas invasoras que indicam início de degradação;
pastagem com a presença de plantas invasoras e cupins, indicando estágio médio de degradação;
pastagem com solo sem cobertura vegetal e processo erosivo intenso que denote pasto degradado e, por consequência, dano ambiental. 

O sistema é totalmente digital, podendo ser utilizado em campo mesmo offline, e  começou como no formato de projeto-piloto na zona rural da Área de Proteção Ambiental do Rio Uberaba. Órgãos fiscalizadores como a Polícia Militar de Meio Ambiente, secretarias estaduais e municipais do meio ambiente, após cadastramento, acessam o sistema por meio de dispositivos móveis, registram as vistorias, geram laudos e encaminham diretamente ao Ministério Público.

A primeira aplicação prática do Sipade resultou na celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta pelo MPMG em julho de 2024 (Inquérito Civil MPe 02.16.0701.0092642/2024-43), marco importante na incorporação da tecnologia à atuação resolutiva do Ministério Público na tutela do solo. O projeto pretende envolver os Ministérios Públicos de outros estados com a adaptação do sistema para atender as especificidades dos diferentes biomas e regiões brasileiras. 

É importante ressaltar que, a urgência em restaurar áreas degradadas e proteger o solo não se limita à preservação ambiental local. Trata-se também de uma medida essencial para a mitigação das mudanças climáticas, diante da função estratégica que o solo desempenha como sumidouro de carbono.

Segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), práticas de manejo sustentável do solo e a recuperação de áreas degradadas podem contribuir com até 30% das ações globais necessárias para limitar o aquecimento global a 1,5°C. 

O compromisso assumido pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris – de alcançar a neutralidade climática até 2050 – não será cumprido sem ações estruturadas de recuperação de solos e de conversão produtiva. Essa agenda, estratégica para a mitigação das mudanças climáticas, precisa ganhar centralidade nos debates da COP30, que será sediada em Belém em 2025. 

Dessa forma, o Ministério Público, enquanto pilar da justiça climática, tem buscado oferecer uma resposta institucional concreta ao maior passivo ambiental do país, convertendo um desafio histórico em uma oportunidade real de regeneração ecológica e uso sustentável do território nacional.

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