Securitização da dívida pública: um potencial inexplorado da LC 208

Os desafios que os entes federados de todo o país têm enfrentado há anos no âmbito das finanças públicas, na tentativa cada vez mais árdua de conseguir fechar as contas, são imensos. Crescem as necessidades públicas e, em algumas áreas, ficam cada vez mais caras.

É o que se vê, por exemplo, na saúde. Surgem técnicas, aparelhos e medicamentos novos, mais eficientes e sofisticados – e caros. E não há como o Poder Público se negar a fornecê-los: afinal a vida e a saúde não têm preço, e o Estado tem o dever de assegurá-los.

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Essa situação é identificada em diversos outros setores. Os governantes se veem às voltas com a necessidade de atender às demandas, sem contar com mais recursos para isso. E as perspectivas futuras não são animadoras. A economia não dá sinais claros de recuperação e crescimento, e a reforma tributária só traz incertezas quanto ao futuro da arrecadação no âmbito dos estados e municípios. Governadores e prefeitos têm muito com que se preocupar. Equilibrar o orçamento é tarefa que está a exigir cada vez mais esforço e criatividade.

Por todas essas razões, novas fontes de receita, especialmente as que não envolvam aumento da já excessiva carga tributária, são sempre bem-vindas.

Em 2 de julho de 2024 foi sancionada a Lei Complementar 208/2024, que introduziu na Lei 4.320/1964 o artigo 39-A. Esse dispositivo autoriza a cessão onerosa de direitos creditórios (tributários e não tributários, inclusive inscritos em dívida ativa) da União, estados, Distrito Federal e municípios a entidades privadas ou fundos regulamentados pela CVM.

Trata-se da disciplina legal do que se convencionou chamar, popularmente, de securitização da dívida pública, permitindo que o ente federado comercialize seus créditos com o setor privado para antecipar o recebimento de valores futuros a que tem direito, mas cujo pagamento é incerto. O objetivo é viabilizar a captação imediata de recursos e aprimorar a gestão fiscal, convertendo em receita presente créditos de realização duvidosa.

O artigo 39-A estabelece regras rigorosas para a cessão de créditos, exigindo a preservação da natureza original do crédito, incluindo garantias, condições contratuais, índices de correção, valores e vencimentos. A cobrança permanece sob responsabilidade da Fazenda Pública, mesmo após a cessão, que é definitiva e transfere apenas o direito de recebimento ao investidor, sem criar vínculo com o devedor.

Somente créditos já constituídos e reconhecidos, inclusive parcelados, podem ser cedidos — vedando-se receitas futuras incertas. A operação requer autorização por lei específica local e deve respeitar o prazo de até 90 dias antes do fim do mandato, salvo se o pagamento for posterior. É proibida a cessão de créditos pertencentes a outros entes federativos. As normas visam garantir transparência e proteger os direitos do contribuinte e do ente público.

A Lei Complementar 208/2024, ao incluir expressamente no § 4º do artigo 39-A que a cessão “não se enquadra” nas definições de operação de crédito da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e que será “considerada operação de venda definitiva de patrimônio público”, definiu a natureza jurídica da operação como não caracterizadora de endividamento.

Com isso, tais transações ficam excluídas dos limites de dívida e das vedações previstas na LRF para operações de crédito (artigo 29, incisos III e IV, e art. 37), não sendo exigida autorização prévia do Senado (artigo 32), nem a observância dos tetos de 120% da Receita Corrente Líquida (RCL) para municípios e 200% para estados.

Por envolver alienação de ativo público, aplica-se a regra geral de licitação para venda de bens (Lei 14.133/2021, artigo 2º, I), o que importa, em regra, na contratação de instituição que funcione como agente financeiro para estruturação de um Fundo de Investimento em Direitos Creditório (FIDC) e recepcione os créditos que serão objeto da transação por meio de processo competitivo

Outra possibilidade que se coloca é a criação de uma entidade ligada a Administração Pública (como uma empresa estatal, por exemplo), para estruturar a operação, na modalidade de Sociedade de Propósito Específico – estando, nesse caso, dispensada a realização de licitação. Na ausência de SPE, a licitação permanece obrigatória.

Como se pode constatar, estabeleceu-se todo um regime jurídico próprio para as operações, e, havendo segurança jurídica, segui-lo é fundamental para o sucesso da iniciativa.

Atualmente, com um ano de vigência da lei, o que se constata é o não aproveitamento por parte dos entes federados desse importante instrumento de Direito Financeiro, dadas as muitas incertezas sobre a correta aplicação da lei e o temor dos gestores em cometer ilegalidades e virem a ser responsabilizados por operações que sempre envolvem recursos públicos e valores expressivos. 

É necessário promover um debate mais aprofundado entre os diversos atores envolvidos — não apenas os entes federativos e os agentes do setor privado, mas, sobretudo, os órgãos de controle e o sistema de Justiça — a fim de consolidar convicções que confiram a segurança jurídica indispensável às operações e viabilizem o uso de um instrumento com potencial para se tornar uma forma relevante e eficaz de gestão das finanças públicas.

Avançar na análise das principais questões envolvidas permite fomentar o aprofundamento no assunto e colaborar para que, após um ano, a securitização da dívida pública possa tornar-se uma realidade e colaborar para que os gestores tenham uma nova perspectiva de alívio na difícil gestão das finanças públicas.

Além das questões já mencionadas, muitas outras merecem atenção.

Ao estabelecer de forma expressa que a operação trata da alienação de parcela do patrimônio público, a lei complementar afastou as amarras previstas no artigo 32 da Lei de Responsabilidade Fiscal aplicáveis às operações de crédito. Da mesma forma, deixou claro que tal operação não se submete aos limites orçamentários nem às obrigações e vedações do artigo 38 da LRF, que disciplina as operações de crédito por antecipação de receita orçamentária.

No entanto, por se tratar de receita de capital, os valores decorrentes da cessão de crédito devem observar, além do disposto no artigo 44 da LRF, a destinação obrigatória prevista no § 6º do recém-inserido artigo 39-A da mesma lei, que exige a aplicação de parte do montante em despesas vinculadas ao regime de previdência social e do restante em despesas de capital.

Vale ressaltar, contudo, que a modelagem da operação a ser implementada pelo ente público interessado deve obedecer rigorosamente aos preceitos estabelecidos pela nova lei complementar, sob pena de a operação de securitização ser desnaturada e o ato correspondente vir a ser interpretado como indevida renúncia de receitas ou alienação irregular de patrimônio público, ensejando a responsabilização dos agentes envolvidos.

A estruturação adequada do projeto exige, inicialmente, a edição de lei local específica e a correspondente regulamentação administrativa. Em seguida, deve-se proceder à cessão dos créditos selecionados para compor o patrimônio objeto da securitização.

Na sequência, realiza-se a contratação de instituição financeira habilitada para a emissão dos títulos ou o uso de uma SPE para emissão dos títulos, com prévia autorização da CVM, culminando na comercialização dos ativos e no subsequente acompanhamento da cobrança.

Ressalta-se que, nesse ponto, não é imprescindível que o FIDC comercialize as quotas, podendo a securitização se dar como um mecanismo de otimização das cobranças, a fim de melhorar o valuation para uma futura ida ao mercado.

Um dos principais pontos de atenção dos órgãos de controle será, sem dúvida, a avaliação dos valores praticados na operação, em especial o deságio aplicado. Este deverá observar parâmetros de mercado, de modo a evitar qualquer prejuízo ao erário. É o que o mercado denomina como “risco moral”. A facilidade de antecipar receitas futuras pode levar, consequentemente, a uma menor diligência em relação às atividades de operacionalização da cobrança administrativa e judicial da dívida ativa, comprometendo a arrecadação regular a logo prazo.

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A operação deve ser fundamentada por justificativa técnica, financeira e jurídica consistente, acompanhada de pareceres que atestem sua segurança, economicidade e vantajosidade. Recomenda-se estudo de viabilidade econômico-financeira comparando o Valor Presente Líquido (VPL) da securitização com o do fluxo de caixa da cobrança direta, considerando taxa de recuperação histórica, tempo médio de arrecadação e custo de oportunidade do capital.

Além disso, é essencial assegurar transparência ativa: a sociedade deve ter acesso às informações sobre os créditos cedidos, estrutura da operação, deságio aplicado e destino dos recursos.

A securitização da dívida pública, enquanto instrumento legítimo de Direito Financeiro, quando estruturada em conformidade com os ditames da Lei Complementar Federal 208 — que neste mês celebra seu primeiro aniversário —, revela-se um relevante mecanismo de reforço de caixa para os entes federativos, especialmente em contextos de restrições fiscais e déficits orçamentários, que não pode ser menosprezado.

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