Modernização de hidrelétricas e os desafios jurídicos por trás das turbinas

Nos últimos dezanos assistimos a uma guinada silenciosa, mas estratégica, no coração do parque gerador brasileiro. Usinas que iniciaram operação nos anos 1970 e 1980, até então consideradas maduras, tornaram-se candidatas prioritárias a programas robustos de modernização e repotenciação. Grandes concessionárias de geração estão investindo na atualização de seus ativos.

A Copel concluiu em 2021 a modernização completa da UHE Foz do Areia (1.676 MW, inaugurada em 1980), em um projeto de seis anos e R$ 150 milhões de investimento, que envolveu a reforma e substituição de equipamentos das quatro unidades geradoras.

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Como resultado, a usina passou a gerar mais energia com a mesma quantidade de água, graças ao aumento de rendimento das máquinas. A potência nominal saltou de 1.676 MW para 1.744 MW (aumento de 68 MW ou 4%), enquanto os testes de aceitação apontaram acréscimo de 12% na energia gerada com a mesma lâmina d’água.

Outro caso é a Usina de Jaguara (424 MW, operando desde 1971), cujo concessionário atual, a Engie Brasil, celebrou em 2023 um contrato com a Andritz Hydro para modernizar as quatro unidades Francis de 106 MW cada.

O acordo previu a troca de turbinas, geradores, reguladores de velocidade e tensão, sistemas de controle e auxiliares, visando elevar a confiabilidade e ampliar a vida útil da usina até o fim da concessão em 2048. A potência permanece em 424 MW, mas a Engie já obteve aval regulatório para adicionar duas novas unidades futuramente, elevando o conjunto para 656 MW. 

A UHE São Simão (1.710 MW, construída nos anos 1970) teve em 2022 o início de um amplo projeto de modernização liderado pela GE Vernova, contratada pela Spic Brasil (concessionária da usina). O escopo abrange as seis unidades geradoras e todos os sistemas auxiliares, incluindo fornecimento de novos equipamentos de turbinas e geradores, engenharia de integração, montagem e comissionamento.

Trata-se de um projeto de longa duração, estimado em nove anos, executado em fases, de modo a modernizar uma unidade por vez sem interromper completamente a geração. As seis unidades de 285 MW permanecerão em 1.710 MW, mas receberão rotores, geradores e sistemas auxiliares totalmente novos, preparando a usina para futuras ampliações previstas no LRCap.

A CTG Brasil, por sua vez, iniciou em 2017 a modernização integral da UHE Jupiá (1.551 MW, inaugurada em 1969), dentro de um programa de dez anos que, junto com Ilha Solteira, consumirá cerca de R$ 3 bilhões. O contrato está nas mãos de um consórcio liderado pela GE Vernova, em parceria com PowerChina e Harbin Electric.

Até aqui, 9 das 14 unidades já receberam novos rotores, estatores e sistemas digitais de automação. O ganho é mensurável: a garantia física da usina foi revista pela Aneel de 886 para 904,3 MW médios (aumento de 18,3 MW médios, ou 2%, sem mexer na potência instalada).

Já a vizinha Ilha Solteira (3.444 MW, em operação desde 1973) entrou no mesmo programa em 2019. O cronograma prevê a reforma completa das 20 unidades geradoras – quatro delas, de 161,5 MW cada, já foram devolvidas ao serviço com novos conjuntos turbina-gerador.

Embora a potência nominal permaneça inalterada, a CTG reporta saltos de confiabilidade e automação: controles que antes exigiam leitura manual passaram a ser digitais, reduzindo paradas não programadas e elevando a disponibilidade acima de 95%.

Com o mesmo consórcio GE/PowerChina/Harbin à frente das obras e dentro do envelope de R$ 3 bilhões, a expectativa é que a eficiência adicional se traduza, nos próximos ciclos de revisão da Aneel, em aumento tangível de energia assegurada — tudo isso sem novos impactos ambientais.

A Eletrobras, por meio de suas subsidiárias (como Furnas e Chesf), também tem empreendido programas abrangentes de modernização. Um exemplo recente é a Chesf, que concluiu em 2025 a modernização das turbinas da UHE Paulo Afonso II (BA), substituindo rotores e componentes de duas unidades geradoras e realizando melhorias nos sistemas mecânicos e elétricos auxiliares.

O projeto, iniciado em 2022 com investimento de R$ 80 milhões, faz parte de um pacote maior de investimentos (mais de R$ 2 bilhões até 2034) voltado à modernização de diversas usinas do rio São Francisco. 

Energia nova, sem novos impactos

Esse esforço continuará abrangendo outras usinas antigas, indicando uma tendência setorial: em vez de construir novas grandes barragens, o Brasil busca ganhos de capacidade e eficiência repotenciando usinas existentes.

A lista cresce a cada ciclo de investimentos e já ultrapassa a casa dos bilhões de reais. A motivação é evidente: turbinas novas extraem mais megawatts da mesma lâmina d’água, geradores modernos ampliam a confiabilidade do sistema, controles digitais entregam governança operacional digna do século 21

A repotenciação de hidrelétricas já instaladas gera energia adicional sem praticamente nenhum impacto do ponto de vista ambiental. Ao substituir turbinas e geradores obsoletos por máquinas de maior rendimento, ganha-se até considerável potência extra sem precisar alagar um hectare sequer, deslocar populações ribeirinhas ou construir novos vertedouros.

É energia limpa que aproveita a infraestrutura existente – reservatório, linhas de transmissão, licenças ambientais – evitando o longo ciclo de licenciamento e o alto custo social de um projeto greenfield.

A modernização também reduz perdas hidráulicas, diminui o consumo próprio da usina e, por operar com equipamentos mais silenciosos e eficientes, atenua impactos na fauna aquática e na qualidade da água. Some-se a isso o benefício sistêmico: mais megawatts firmes disponíveis nas horas de pico reforçam a segurança energética e diminuem a necessidade de despacho de termelétricas fósseis, gerando economia de emissões de CO₂.

Em síntese, modernizar é extrair valor de um patrimônio público já consolidado, entregando potência adicional com o menor rastro ambiental por megawatt instalado dentre todas as fontes de geração. Mas há um subtexto jurídico que precisa de holofote. Modernizar não envolve apenas aspectos técnicos, compreende um ato jurídico-regulatório complexo que redimensiona contratos, reescreve obrigações e redistribui riscos.

Contratos de direito privado, reflexos de direito público

Embora as hidrelétricas se tratem de bens públicos, os contratos celebrados entre as concessionárias e os fornecedores de turbinas são essencialmente privados. Isso significa negociar no tabuleiro do CódigoCivil: autonomia da vontade, equilíbrio econômico, boa-fé objetiva. Se a concessionária for estatal, aplicam-se as regras licitatórias da Lei13.303/2016, mas a execução continua regida pelos marcos do direito privado.

Ou seja, nada de cláusulas exorbitantes, rescisão unilateral ou mutabilidade compulsória típicas do regime administrativo. É precisamente essa feição híbrida – contratação privada sob o guarda-chuva de uma concessão pública – que torna o arranjo tão interessante e, ao mesmo tempo, tão propenso a litígios mal administrados.

O quebra-cabeça contratual

Os projetos de modernização são geralmente negociados como EPCs turnkey, às vezes fatiados em lotes para ampliar competição. Quem assina, assume compromisso de entregar engenharia, fabricação, desmontagem, montagem e comissionamento. Se compromete, ainda, a níveis de performance severos: rendimento mínimo, vibração máxima, disponibilidade contratada. Se o teste final não atingir a curva-alvo, as partes se veem diante da clássica controvérsia sobre causa raiz, que pode levar a meses de discussão até se converter em uma arbitragem ou processo judicial.

Some-se a esse caldeirão o cronograma milimétrico, em que cada dia de indisponibilidade representa receita perdida na veia e, às vezes, energia de reposição comprada no preço de mercado de curto prazo. É por isso que as cláusulas de delay liquidated damages deixaram de ser apêndice para virar núcleo duro da alocação de riscos.

Modernizar é intervir em ativo envelhecido, muitas vezes sem as built confiáveis. Não raro o contratado encontra infiltração no concreto da casa de força ou alinhamento fora de tolerância nos eixos originais. Se o contrato não traduzir, preto no branco quem arca com surpresas do subsolo, o pedido de aditivo é inevitável – o fornecedor exige preço extra, a estatal recita a Lei de Licitações e os órgãos de controle entram em alerta. Moral da história: em projetos de modernização de hidrelétricas, cláusula de condições preexistentes bem redigida vale tanto quanto engenharia de alta precisão.

Aneel, repotenciação e a armadilha do prazo da concessão

Para além do contrato comercial, há o filtro da Aneel. Qualquer repotenciação que altere potência instalada ou garantia física exige anuência da agência, estudos de impacto e, em muitos casos, alteração do contrato de concessão.

Não é burocracia vazia: se o concessionário aumentar faturamento vendendo mais energia, o poder concedente quer sua contrapartida em forma de outorga adicional. O raciocínio é simples e legítimo, mas pode transformar o modelo econômico de cabeça para baixo se não estiver bem precificado. 

Outro ponto crítico é o relógio da concessão. Investir pesado quando faltam poucos anos para o término é apostar que virá renovação ou indenização. Para que a indenização do saldo dos investimentos não amortizados em bens reversíveis, prevista no artigo 36 da Lei 8.987/1995, seja efetivamente viável, não basta exibir notas fiscais e boa intenção.

É imprescindível que cada desembolso tenha recebido chancela prévia – ou, ao menos, reconhecimento formal — do poder concedente, figure no plano de investimentos aprovado no edital ou no contrato e, sobretudo, componha a lista de bens reversíveis. A falta de um adequado cálculo de payback estabelece um risco concreto de transformar a modernização em um elefante branco regulatório.

Quando a turbina para, a disputa começa

A maturidade contenciosa do setor elétrico hoje se mede pela naturalidade com que arbitragem é prevista nos contratos. Não se trata mais de cláusula exótica, é protocolo de sobrevivência. Litígios de performance, atraso ou claims de custo adicional são, por definição, técnicos demais para a jurisdição estatal. Árbitros especializados, peritos independentes e cronogramas processuais customizados mantêm o projeto vivo enquanto se discute a culpa – e não o contrário.

Mesmo estatais, guardadas as balizas de sede no Brasil, língua portuguesa e publicidade controlada, podem e devem submeter litígios à arbitragem. O que ainda engatinha no Brasil é o uso de dispute boards: o comitê que acompanha a obra in loco e emite decisões provisórias tem capacidade de neutralizar o conflito ainda no berço. Bancos multilaterais já exigem. Cedo ou tarde o mercado local perceberá que se trata de investimento barato frente ao custo de uma indisponibilidade forçada de turbina.

Modernizar turbinas, sem turbinar riscos

Se há algo que a última década deixou evidente é que modernizar usinas não se resume apenas à engenharia: exige abordagem jurídica capaz de equilibrar incentivos, disciplinar responsabilidades e preservar a confiança do investidor que coloca capital em movimento. O desafio que se impõe agora é transformar esses aprendizados casuísticos em padrões contratuais e regulatórios mais claros, difundindo boas práticas de alocação de riscos, de governança de mudanças de escopo e de prevenção de disputas.

Fazer da exceção a regra – seja pela consolidação de cláusulas-modelo, seja pela intensificação do uso de dispute boards e arbitragem especializada – é a melhor garantia de que as próximas turbinas modernizadas não ficarão reféns de incertezas jurídicas. Só assim a modernização hidrelétrica deixará de ser um projeto ousado em cada usina para se tornar política setorial permanente, alinhando interesses públicos e privados em torno de um objetivo comum: energia limpa, segura e previsível para sustentar o desenvolvimento do país.

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