Quando a polarização atinge o Judiciário

No último dia 11 de julho, o Parlamento Federal alemão elegeria três novos juízes para a corte mais alta do país, o Tribunal Constitucional Federal. No entanto, a votação não pôde ocorrer, em razão de controvérsia em torno da candidata Frauke Brosius-Gersdorf, constitucionalista e professora catedrática da Universidade de Potsdam.

A jurista havia sido indicada pela bancada do SPD (Partido Social-Democrata), uma das legendas que compõem o governo federal. Em decisão de última hora, a bancada cristã-democrata, liderada pela CDU do primeiro-ministro Friedrich Merz e parceira do SPD na coligação do governo, retirou o apoio prometido, pois alguns de seus membros consideraram a professora demasiadamente liberal, principalmente devido à sua posição quanto ao aborto. Agora, o Parlamento deverá retomar o assunto somente em setembro, após o recesso do verão.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

Na Alemanha, os juízes da Corte Constitucional são eleitos pelo Legislativo, alternadamente pelo Parlamento (Bundestag) e pelo Senado (Bundesrat), para um mandato improrrogável de 12 anos. No caso atual, coube ao Parlamento eleger três juízes de uma só vez porque várias vagas se abriram simultaneamente, em razão de aposentadoria e fins de mandato.

Na prática, os partidos políticos indicam os candidatos, que, após aprovados previamente por uma comissão parlamentar, são eleitos mediante o voto de dois terços dos parlamentares. Esse procedimento impede que uma única bancada domine o tribunal e força a busca por candidatos de qualidade técnica amplamente reconhecida.

Desde o impasse do dia 11 de julho, diversos parlamentares do SPD, do Partido Verde e do partido A Esquerda vêm criticando os conservadores fortemente por descumprirem acordo pré-existente, deixando os colegas de governo na mão. Membros da CDU, por sua vez, exigem do parceiro SPD uma nova indicação[1], mas os sociais-democratas insistem no nome de Brosius-Gersdorf[2] e acusam os colegas de deslealdade.

A controvérsia é inédita. Jamais o Parlamento rejeitou um candidato indicado ou interrompeu o processo parlamentar de eleição. Ademais, nunca uma indicação foi tão discutida pela classe política e pela imprensa. Nas mídias sociais, observa-se até mesmo uma campanha difamatória contra a professora de Potsdam[3], que tem sido chamada de “ativista radical” e “juíza do horror”, inclusive por políticos e membros da Igreja Católica.[4] No centro do debate encontra-se um parecer que a professora escreveu para o governo anterior, sobre a possibilidade da descriminalização do aborto.

Atualmente, a interrupção da gravidez durante as primeiras 12 semanas de gestação não é passível de sanção, desde que preenchidos certos requisitos, como o comparecimento da gestante a alguma instituição de aconselhamento antes de se submeter ao procedimento. Nesses casos, o aborto é considerado ilícito ainda, mas não há punição.

Em seu parecer, Brosius-Gersdorf sustentou ser possível retirar a hipótese descrita do texto do Código Penal, portanto descriminalizando o que, na verdade, já não é punível. Essa opinião, aliás, não é tão incomum entre juristas, e alguns entendem que a alteração de uma regra considerada hipócrita traria mais segurança jurídica, ao mesmo tempo que pouco alteraria o status quo.[5] 

Outras posições da jurista também causam controvérsia, como sua opinião favorável, durante a pandemia da Covid-19, à vacinação obrigatória, bem como à proibição do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD na sigla em alemão), mais recentemente.

Ao que tudo indica, a campanha através das mídias sociais foi crucial para minar a candidatura de Brosius-Gersdorf, nome até então pouco conhecido fora do ambiente jurídico.

Uma investigação minuciosa de jornalistas alemães e do think tank polisphere evidencia forte movimentação, em canais da internet, de divulgação de desinformação sobre a professora a partir do fim de junho, poucos dias antes da data em que a votação ocorreria. Seu perfil na Wikipedia, que até então continha praticamente dados biográficos, foi alterado múltiplas vezes a partir de 25 de junho, principalmente mediante a introdução de informações sobre seu posicionamento sobre o aborto.

Nos primeiros dias de julho, canais de políticos e jornalistas ligados à extrema direita fizeram inúmeras postagens contrárias à candidata, divulgando inclusive a desinformação de que ela seria a favor do aborto até o nono mês de gestação. Dois dias antes da votação no Parlamento, uma organização contrária ao aborto enviou mais de 37 mil emails a parlamentares da CDU, com o objetivo de impedir a eleição da professora.

Nos últimos dias, Brosius-Gersdorf deu uma entrevista num programa de televisão em horário nobre, explicando suas posições. Representantes da classe jurídica também saíram em sua defesa, e houve até carta aberta em seu favor, assinada por mais de 300 professores de universidades alemãs, muitos de renome. No mais, acusações de suposto plágio em sua tese de doutorado provaram-se infundadas.

É certo que os temas em questão são, de fato, controversos. Toda democracia estável, todo ambiente acadêmico sério tem de permitir o debate e a diversidade de opiniões. No entanto, o que se tem visto é uma exposição exacerbada, alimentada pelos mecanismos das mídias e pela polarização de discussões políticas, que não apenas prejudica a imagem da candidata, mas a reputação do tribunal como um todo. A Corte Constitucional alemã é muito respeitada, inclusive no exterior, e em geral considerada séria e imparcial.

Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!

Até o momento, raramente foi questionado se a corte decide de forma sóbria, nos limites da lei e da Constituição e imune a opiniões de cunho político em geral. A discussão em torno da pessoa da candidata prejudica a anonimidade de uma possível magistrada, e fere a imagem imparcial do tribunal. Opiniões juridicamente fundamentadas por si só não servem para desqualificar uma candidata e sua aptidão técnica para assumir uma cadeira na mais alta corte do país.[6]

No mais, o conflito travado abertamente entre SPD e CDU, partidos que formam o governo, tampouco é saudável para a estabilidade política da Alemanha. Como se sabe, o governo atual foi eleito em fevereiro último, em eleições extraordinárias, convocadas precipitadamente, num momento de instabilidade, após o antigo primeiro-ministro Olaf Scholz perder a confiança do Parlamento e ser obrigado a deixar o governo, meses antes do término do mandato de quatro anos.

É dizer, o momento político é delicado e a controvérsia enfraquece um governo que já nasceu num ambiente de instabilidade, fortalecendo os extremos. A escolha de membros de uma Corte Constitucional não deveria ficar refém de desavenças políticas e instrumentalização de opiniões.

[1] Conf. Winkelmeier-Becker, Elisabeth, Nicht unser Menschenbild, in: Frankfurter Allgemeine Zeitung de 18/07/2025, p. 10.

[2] Conf. Frankfurter Allgemeine Zeitung de 21/07/2025, p. 1.

[3] Conf. Bahners, Patrick, Ein Angriff aus dem Hinterhalt, in: Frankfurter Allgemeine Zeitung de 18/07/2025, p. 11.

[4] Conf. Brosius-Gersdorf schließt Rückzug nicht aus, in: Frankfurter Allgemeine Zeitung de 17/07/2025, p. 1.

[5] Conf. Schröter, Alexander, comentário de 16/07/2025 em https://verfassungsblog.de/stellungnahme-zur-causa-frauke-brosius-gersdorf/.

[6] Conf. Kaube, Jürgen, Neutralität heißt nicht Indifferenz, in: Frankfurter Allgemeine Zeitung de 17/07/2025, p. 9.

Generated by Feedzy