Buscando regular os contratos de cessão de créditos em precatórios de natureza alimentar, Rafael Fonteles (PT-PI), governador do Piauí, sancionou em 16 de abril a Lei 8.651/2025, que estabelece valores de deságio em cessão de crédito alimentar no estado. A norma proíbe a cessão de crédito de precatório desta natureza em percentual superior a 40%, além de dispor que os contratos firmados até a data de publicação e superiores à porcentagem prevista na lei serão considerados abusivos, devendo ser remetidos à autoridade policial para apuração criminal.
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A lei estadual ainda veda, sob pena de reponsabilidade, o repasse ao cessionário de quantia superior ao limite fixado na norma, devendo ser assegurado o depósito, em conta do titular do precatório, do percentual mínimo de 60% do seu crédito. Por fim, dispõe que o estado do Piauí deverá adotar as medidas necessárias ao cumprimento da norma, especialmente nos contratos que envolvam pessoas com as preferências legais previstas no art. 100 da Constituição.
O dispositivo mencionado estabelece que “os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas federal, estaduais, distrital e municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”.
Na avaliação de especialistas ouvidos pelo JOTA, contudo, a norma possui indícios claros de inconstitucionalidade, por invadir a competência legislativa privativa da União ao disciplinar sobre matéria de Direito Civil e Processual, podendo ainda trazer impactos econômicos ao mercado de precatórios. O principal e mais imediato, por exemplo, está relacionado ao desestímulo à atuação de investidores especializados, o que reduz a liquidez e, em consequência, dificulta operações que, para muito credores, são a solução para obter recursos que lhes são devidos de forma mais rápida.
A norma piauiense desencoraja operações estruturadas, securitizações e fundos de investimento em precatórios. Além disso, de acordo com os especialistas, a norma traz riscos evidentes, ao invalidar negócios anteriores e qualificá-los como abusivos.
Daniel Longa, sócio de reestruturação do Cescon Barrieu, avalia que uma legislação como pode dificultar os avanços do mercado de precatórios, e seus impactos, apesar de parecer que serão refletidos apenas em território piauiense, podem acabar se tornando uma tendência nos demais estados. “Esse tipo de lei é prejudicial para o mercado de crédito e pode afastar investidores mais sérios de prover essa alternativa”, pondera.
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Longa cita que tem visto o estado e o Judiciário algumas vezes refratários em homologar essas cessões de crédito, seja pelo custo operacional ou por assistencialismo. “Mas o fato é que o mercado de precatórios é importante para quem vende esses ativos e busca a liquidez imediata, uma alternativa para um funcionário público ou aposentado que não quer se endividar com consignado, um empréstimo, e que cansaram de esperar pelo recebimento de um direito”, avalia.
Assim como Longa, Gilberto Badaró, advogado especialista em precatórios e sócio do Badaró Almeida & Advogados Associados, acredita que normas como essa afastam investimentos e comprometem a previsibilidade – essencial a qualquer mercado –, especialmente no de precatórios, que já sofre com a morosidade e o inadimplemento do poder público. “A tendência natural será a retração desse mercado no Piauí, dificultando ou mesmo inviabilizando operações de cessão que, para muitos credores, representam a única possibilidade de acesso a recursos que o estado lhes deve, mas não paga em tempo razoável”, diz.
Segundo o advogado, a Lei 8.651/2025 também restringe a autonomia privada, ao interferir diretamente na liberdade contratual e na livre iniciativa, ambas protegidas pela Constituição. Além dos impactos jurídicos e econômicos, Badaró considera que a legislação ainda pode trazer um risco penal por meio do envio compulsório desses contratos à autoridade policial, sem base legal clara, podendo gerar investigações abusivas, em afronta ao princípio da legalidade.
De acordo com Clóvis Gimenes, sócio do Gimenes Neto Advogados, não cabe ao estado do Piauí querer definir uma limitação objetiva sobre o deságio na cessão. Para ele, é ainda mais preocupante a disposição do art. 3° da lei, que busca atribuir efeitos retroativos para considerar abusivos contratos firmados anteriormente, inclusive com ordem para apuração criminal. “Neste ponto, entendo que a norma pode ser questionada acerca de violações a irretroatividade, ao ato jurídico perfeito e a segurança jurídica”, afirmou.
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Thiago Paranhos Neves, advogado do Pinheiro Guimarães Advogados, segue o mesmo entendimento que os seus colegas. Em sua avaliação, a imposição do limite de 40% de deságio na cessão de créditos de precatórios alimentares devidos pelo Piauí é altamente questionável e pode gerar judicialização. “Esse limite só se aplica aos acordos diretos, realizados perante juízos auxiliares de conciliação de precatórios, mas não pode ser aplicada a qualquer operação de cessão”, explica.
Ele ressalta que a própria Constituição reconhece o direito do credor de ceder seus precatórios a terceiros, independentemente da concordância do ente devedor. “Desta forma, não cabe ao estado impor óbices ou condições à cessão”, afirmou.
Por outro lado, Eduardo Vital Chaves, advogado do Rayes e Fagundes, entende que não há inconstitucionalidade na lei do Piauí, visto que, para ele, a norma se limita a tratar do limite de deságio nas cessões a terceiros de precatórios de natureza alimentar pagos naquele estado, não contradizendo a legislação federal que regulamenta a matéria e nem o artigo 100 da Constituição.
Segundo Chaves, a limitação do deságio em, no máximo, 40% do valor do crédito atualizado, visa evitar especulações e abusos na compra e venda de precatórios. “Sabidamente, o mercado de precatórios trabalha com margens bem agressivas, então a preocupação aqui é que o precatório alimentar não seja alvo de especulações do mercado. Não raros casos, quem vende o precatório se encontra em um momento de vulnerabilidade e urgência, o que faz com que vendam o precatório e não possam aguardar por seu regular pagamento”, avalia.
Logo, em sua avaliação, a limitação do deságio é uma ferramenta interessante adotada pelo Piauí. Para Chaves, no entanto, o ponto crítico da lei e que pode trazer insegurança jurídica é o seu art. 3°, ao falar que os casos de violação da lei serão remetidos à autoridade policial para apuração criminal. “Não me parece que é a medida mais coerente. Seria mais coerente, por exemplo que a cessão em percentuais diversos fosse causa de anulação ou revisão das cessões realizadas”, afirma.
A reportagem do JOTA procurou a Procuradoria-Geral do Estado do Piauí (PGE-PI) reiteradas vezes, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.