Era comum no pensamento político latino-americano uma admiração irrestrita aos europeus e estadunidenses, nutrindo simultaneamente deslumbramento com eles e mea culpa conosco, pelas dificuldades socioeconômicas da nossa região. No entanto, com o desenvolvimento progressivo das ideias e dos movimentos geopolíticos, percebe-se uma oportunidade única para nós: a energia limpa como mecanismo de soberania.
Não surpreende ninguém a proposta do presidente Lula perante a Cúpula do Mercosul. Mas anima. O destaque quanto ao papel estratégico da América do Sul perante às mudanças climáticas e à promoção da transição energética global finalmente chegou aos espaços decisórios. O porta-voz da maior economia da região convocou o bloco regional a assumir seu papel de liderança frente aos desafios do aquecimento global e se consolidar como exemplo de desenvolvimento sustentável.
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Enquanto o restante do mundo se debate para cumprir a recomendação do Primeiro Balanço Global (Global Stocktake [GST], em inglês), firmado na COP28 em Dubai, quanto à meta de triplicar a geração de energia limpa até 2030, a América Latina já gera 65% da sua eletricidade por intermédio de fontes renováveis.
Nossos números não são perfeitos, mas estamos no caminho. Se a América Latina tiver ambição política para avançar, é plenamente possível nos livrarmos da dependência de combustíveis fósseis na matriz elétrica, como já averiguado pela Agência Internacional de Energia (AIE).
O que se fez até o momento é meritório: com esforços próprios, os países latino-americanos adicionaram energia solar, hidrelétrica e eólica aos seus respectivos sistemas elétricos, alcançando posição de destaque internacional no tema.
Um exemplo icônico ocorreu em maio, com lideranças reunidas na Semana Regional do Clima, no Panamá. Naquela oportunidade, Honduras anunciou o ingresso na Powering Past Coal Alliance (PPCA) e formalizou uma conquista para o subcontinente: a América Latina está livre de novos projetos de mineração de carvão. Hoje, é impossível falar de transição energética sem olhar para nós.
Mas é preciso mais e mais rápido. Embora o cenário seja positivo, ainda falta energia para conquistar o espaço estratégico que esses números representam. É urgente alavancar sinais políticos robustos para que os fluxos financeiros possam impulsionar a ambição climática.
Objetivamente falando, é preciso que os governos nacionais planejem e anunciem em suas NDCs (documentos nos quais estabelecem as metas climáticas nacionais alinhadas ao Acordo de Paris), as estratégias com prazos mensuráveis para se livrarem da dependência dos combustíveis fósseis. Uma forma de fazê-lo seria incluir um plano claro para encerrar o apoio financeiro público aos combustíveis fósseis e o compromisso de não emitir novas licenças para exploração de carvão, petróleo e gás.
Apesar da abundância em fontes renováveis utilizáveis, na América Latina ninguém fez coisa parecida até agora. E, claro, as movimentações que nos colocam no rumo do desenvolvimento sustentável naturalmente sofrem resistências dos setores em franca obsolescência, assustados com a pujança da geração elétrica renovável.
Na Colômbia, por exemplo, houve uma corrida pela judicialização uma vez que o nosso vizinho se comprometeu a não abrir novos poços de petróleo a partir de 2023.
A transição, entretanto, exige mais do que não explorar novos projetos, mas também substituir os existentes: adicionar energia limpa sem que as fontes sujas sejam substituídas, não resolve o problema. Seguiremos em rota de aquecimento planetário acima dos níveis seguros para as pessoas e para a economia. Inspirados pelos atuais 65%, busquemos 100% de eletricidade limpa e renovável até a metade do século.
O fluxo dos recursos financeiros e sua estabilidade não pode ser ignorado. A região precisa de financiamento acessível para cumprir uma possível ambição de se tornar mais do referência, mas líder. Os países precisam implementar formas de fazer com que grandes indústrias poluentes financiem a transição e cortar gradualmente os subsídios públicos aos setores mais emissores. Hoje, a lógica é inversa: ainda se favorece os combustíveis fósseis, que são menos eficientes e mais caros para todos nós.
Até aqui os países latino-americanos fizeram a transição com esforço próprio e em uma realidade difícil, uma vez que é imperativo garantir a promoção do desenvolvimento como estratégia de aliviação dos níveis de pobreza. Com o avanço dos nossos níveis de desenvolvimento somado ao crescimento populacional, aumenta a nossa demanda geral por energia. O crescimento do PIB per capita e o aumento de capital por trabalhador estão, ainda, interligados com uma expectativa de aumento de emissões.
Se por um lado nossa eletricidade é notável, todos os povos latino-americanos estamos dependentes de modelos de transporte de cargas e de pessoas intensivos em carbono. A América Latina queima diesel para se locomover. Ainda que não tivéssemos questões climáticas como razão maior e risco existencial, as reservas de combustíveis fósseis não são eternas, estão estruturalmente ligadas à instável geopolítica do petróleo e precisam de subsídios exponencialmente crescentes para se tornarem economicamente viáveis.
Tendo experienciado em 2024 o ano mais quente registrado e vendo no preço do café um exemplo tangível do custo inflacionário da inação climática, temos a estamina para reagir em prol de em um futuro alinhado ao novo clima, de bom senso econômico e que garanta a soberania que o continente busca desde há muito.
Não há mais tempo a perder. Se quisermos um planeta habitável, é urgente libertar o setor energético da dependência fóssil e garantir o financiamento específico para acelerar a transição. A transição completa, justa, ordenada e equitativa até 2050 é imperativa, possível e exportável.
Nas negociações intermediárias para a COP30 que ocorreram em Bonn, na Alemanha, vimos um ensaio para resoluções efetivas da cúpula do clima de Belém, em novembro. No Programa de Trabalho para a Transição Justa, a Associação Independente da América Latina e do Caribe (AILAC), bloco no qual o Brasil não faz parte, emplacou uma proposta digna de líder.
Inseriram no texto ainda em negociação que é incontornável garantir que todas as pessoas tenham acesso à energia limpa, confiável e acessível. Isso inclui ampliar o uso de fontes renováveis e gerar oportunidades sociais e econômicas na transição para longe dos combustíveis fósseis.
A América Latina pode apontar para si os holofotes da liderança na transição para longe dos combustíveis fósseis. O movimento já começou, seja em Bonn ou na Cúpula do Mercosul. O diálogo sobre os meios de implementação, portanto, é o braço faltante para discutir o mapa do caminho que materialize as necessidades urgentes: os combustíveis limpos, a eletrificação das frotas, a eficiência energética, o escalonamento dos investimentos em renováveis e a substituição do uso de petróleo.
A América Latina tem a chance histórica de se afirmar como potência energética limpa na nova era e tem demanda para usar essa janela de oportunidade como mecanismo de desenvolvimento justo. Falta, apenas, a vontade política.