Existe vida pensante fora do Sudeste?

Título polêmico, sabemos. Mas, como diz o ditado popular, alguém precisa colocar o dedo na ferida. O Brasil é profundamente desigual. Dados do IBGE comprovam que, da rede de esgoto ao IDH, passando pela alfabetização e acesso à internet, direitos básicos não foram distribuídos com a mesma generosidade que a brisa litorânea.

Menos evidente, porém igualmente alarmante, é o abismo na produção de opinião pública. Veja que curioso: quanto mais próxima da linha do Equador está uma região, menores são as chances de alguém ter voz nas colunas de jornais de alcance nacional. Como se houvesse um filtro invisível que autoriza apenas as ideias com sotaque paulista ou, no máximo, carioca.

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Para investigar essa hipótese, a Gauss Analítica, empresa sediada no Recife, mapeou a origem geográfica de 111 colunistas dos maiores conglomerados de mídia do país. Resultado: 79,28% deles viveram, ou precisaram viver, na região Sudeste para construir suas trajetórias.

Coincidência? Talvez. Consequência de concentração populacional e de PIB? Em parte. Mas o problema é circular: o PIB atrai gente, que atrai mídia, que atrai mais PIB, como num ciclo vicioso com sede na avenida Paulista. A concentração beira o insólito.

O Rio de Janeiro, com apenas 7,91% da população, abriga 31 colunistas, ou seja, quase quatro vezes mais do que seria esperado demograficamente. No Distrito Federal, o fenômeno é ainda mais agudo: com 1,39% da população, emplaca 10 colunistas. A razão relativa é de 6,49. Se Brasília fosse uma startup de comentaristas, já teria virado unicórnio. O Gráfico 1 mostra a desigualdade na representação de colunistas entre as regiões do país:

A linha pontilhada delimita a situação de total proporcionalidade entre o percentual de colunistas e o peso populacional. Se a razão é maior do que 1, a região tem mais colunistas que o esperado dado o seu tamanho populacional.

Esse desequilíbrio afeta diretamente o modo como o Brasil é narrado. Não raro, o país é interpretado a partir das lentes do Sudeste, como se São Paulo fosse uma espécie de lupa moral e intelectual da nação. A política do Nordeste vira “exótica”, a cultura do Norte é invisibilizada e o Centro-Oeste só aparece quando Brasília entra em crise (o que, sejamos honestos, é frequente).

Na academia, o padrão se repete. O Sudeste costuma ser tratado como o Brasil em miniatura. Esse olhar enviesado, que chamamos aqui de “sudestecentrismo”, empobrece o debate e transforma regiões inteiras em rodapés do Brasil. Para dimensionar a desigualdade, calculamos também o índice de Gini da distribuição geográfica dos colunistas: 0,566. Na literatura internacional, valores acima de 0,5 já sinalizam risco de instabilidade social.

No nosso caso, o problema é de instabilidade cognitiva nacional: o que se pensa sobre o Brasil é, em grande medida, decidido por uma minoria geográfica. Se a opinião pública fosse uma playlist, ela estaria no modo aleatório mas travado nas faixas de São Paulo e Rio.

Para o leitor não achar que é picuinha da nossa parte, reproduzimos esses cálculos tendo agora como parâmetro a quantidade de programas e cursos de pós-graduação no Brasil, conforme estimativas oficiais da Capes. O resultado se repete: a vida pensante parece habitar quase exclusivamente a região Sudeste. Vejamos o Gráfico 2:

O Sudeste tem muito mais colunistas do que o esperado dada a oferta de programas e cursos de pós-graduação. A razão entre a porcentagem de colunistas e a de programas de pós-graduação é de 1,88, e entre colunistas e cursos de pós-graduação é de 1,70 — evidenciando uma super-representação dessa região. O impacto mais evidente dessa conjuntura de elevada desigualdade é que a opinião pública nacional se torna refém de um viés regionalista, ou sudestino, gentílico disseminado como autocrítica pelo comediante Gregório Duvivier.

Quem mora em São Paulo ou no Rio de Janeiro, se formar sua opinião apenas com base no que é disseminado pelas grandes empresas de mídias, provavelmente vai enxergar o Brasil com antolhos. Uma vez, não faz tanto tempo assim, um primo carioca perguntou se Recife tinha ruas asfaltadas. O que deveríamos dizer a ele?

Para ilustrar a questão, vale contar aqui um episódio que ocorreu durante uma entrevista do ganhador da Palma de Ouro no festival Cannes, o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. O cineasta reagiu rispidamente para esclarecer que seu trabalho não pode ser classificado como cinema regional. E nem mesmo o de seus colegas, como o também pernambucano Gabriel Mascaro, vencedor do Urso de Prata, neste mesmo ano, no Festival de Berlim.

O reflexo disso é perceptível na construção da agenda pública. Temas estruturantes de outras regiões tendem a desaparecer ou, quando aparecem, são tratados como curiosidades. A menor taxa de mortalidade por Covid-19 no Brasil foi registrada no Maranhão. Não foi manchete nos grandes jornais. Mas rendeu, é verdade, uma bela matéria na revista Piauí e uma réplica ainda mais curiosa no Vermelho. Imaginem se o feito fosse em Florianópolis ou Campinas: haveria dossiê, documentário e talvez um TED Talks.

Esse filtro regional molda também a visibilidade das universidades. Enquanto USP, UFRJ e PUC-SP ocupam espaço cativo no debate, instituições do Norte e Nordeste mal recebem menções honrosas. Parece detalhe, mas não é.

Em um cenário de avaliação por impacto, “quem não é visto não é lembrado”. E quem não é lembrado não recebe fomento. Pior do que ser invisibilizado é ter sua realidade julgada por quem não a conhece. Quando políticas públicas são desenhadas a partir de experiências concentradas em poucas metrópoles, o risco é alto: o Brasil profundo vira um eco distante. A diversidade do país exige mais do que vozes ecoando dos mesmos CEPs.

Mudar esse quadro pode parecer quixotesco. Mas lembramos que, há poucas décadas, protagonistas negros em novelas e mulheres à frente dos jornais eram exceções. O tempo anda, ainda que mancando, e a história mostra que alguns tropeços levam a avanços. É preciso, portanto, escancarar o problema e furar a bolha sudestina que nos impede de enxergar o Brasil inteiro com os dois olhos abertos.

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