A recente aposta do Supremo Tribunal Federal na busca pelas conciliações — essa “nova fronteira” do tribunal — tem sido apresentada pela corte como uma inovação virtuosa. A prática do STF, no entanto, demonstra que essa agenda, sobretudo quando transborda das ações litigiosas (ACO, AO e MS, por exemplo) para as ações de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (ADI, ADC, ADO e ADPF autônoma), constitui um equívoco normativo e institucional que ameaça tanto o desenho da jurisdição constitucional brasileira quanto a proteção de direitos fundamentais.
Tal movimento não passa despercebido e gera múltiplas reações. Se parte da comunidade acadêmica demonstra, há algum tempo, perplexidade com a autocomposição no âmbito das ações de controle[1], setores da sociedade civil, nos últimos anos, também têm levantado indagações sobre as conciliações conduzidas pela corte[2].
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No fim, estudiosos e sociedade se questionam: a busca pela autocomposição em ações de controle de constitucionalidade é o verdadeiro papel de um Tribunal Constitucional? Ou, em outros termos, como apontaram os professores Dimitri Dimoulis (FGV-SP) e Soraya Lunardi (Unesp), “ser ou não ser Corte Constitucional? Eis o problema da conciliação”.
Conciliar em ações de controle?
No controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (ADI, ADC, ADO e ADPF autônoma), o Supremo não arbitra litígios federativos ou privados. Ao contrário, ele se pronuncia sobre a compatibilidade de leis e atos normativos com a Constituição. Sem partes, sem interesses contrapostos ou lides[3], nas ações de controle concentrado um legitimado ativo, que não é dono do direito e não dispõe sobre a ação, provoca o STF para que esse averigue a constitucionalidade de determinado ato normativo com o texto constitucional. Exatamente por tal razão que a causa de pedir das ações de controle é aberta e a desistência é vedada.
Introduzir audiências de conciliação nesse espaço de controle de constitucionalidade, em um impróprio transplante jurídico de instrumentos típicos do processo civil para o processo constitucional objetivo, desloca o foco do Supremo de guardião da supremacia constitucional para mediador de interesses políticos e econômicos, abrindo a porta para se “negociar a Constituição”.
Isto é: troca-se cláusulas constitucionais por compromissos contingentes firmados por atores circunstanciais, que quase nunca representam grupos vulneráveis. O resultado da criação dessa competência constitucional anômala é a relativização de direitos fundamentais, especialmente os de grupos vulneráveis que não dispõem de poder de barganha nas audiências e que têm os seus direitos transacionados por agentes que sequer deveriam estar presentes no processo e no procedimento de uma ação de controle.
Déficit de representatividade e voluntariedade
Para além do impasse técnico elementar, qual seja a impossibilidade jurídica de autocomposição em ações de controle concentrado e abstrato[4], é preciso dizer que qualquer autocomposição pressupõe voluntariedade e adequada representação dos afetados.
Nos processos acordados no STF, porém, comparecem entes estatais, corporações ou associações de alcance limitado, enquanto pessoas diretamente impactadas raramente têm voz ou poder de decisão.
Isso agrava o risco de decisões sobre direitos alheios sem participação adequada de seus titulares – problema grave quando estão em jogo direitos de minorias. Um exemplo negativo e que ilustra a discrepância entre minorias e maiorias ocorreu na audiência em conjunto das ações que discutiam a constitucionalidade da lei do marco temporal (Lei 14.701/2023), com claro prevalecimento de agentes ligados ao agronegócio em detrimento dos indígenas.
Ausência de marco normativo e controle procedimental
O tribunal tem expandido a sua prática de conciliação nas ações de controle “caso a caso”, com marcante interferência do relator e sem a participação do plenário. É o ministro relator quem manda o processo para conciliação, assim como a presidência da audiência de conciliação incumbe a quem o mesmo relator indicar – seu juiz instrutor, juiz auxiliar ou o juiz coordenador do Núcleo de Soluções Consensuais do STF.
Convém lembrar que o órgão do STF responsável pela conciliação é um órgão inventado por resolução unilateral da presidência da corte. Não está previsto na Constituição, na legislação ou no Regimento Interno do STF. Tudo isso cria um terreno fértil para o voluntarismo judicial, sem padrões transparentes para aferir representatividade, delimitar objetos conciliáveis ou submeter eventuais ajustes ao plenário.
O fracasso anunciado: o caso do IOF
Esses déficits explicam o desfecho da tentativa de conciliar o Executivo e o Congresso Nacional na Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7827 e 7839 e na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 96, sobre o Decreto Executivo que majorou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). O encontro casual dos principais políticos negociadores em evento ocorrido em Lisboa mostrou que todos defendiam o consenso. Os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, inclusive, defenderam a saída pela autocomposição[5].
Mas o retorno ao Brasil mostrou o vazio procedimental da conciliação nas ações de controle: as partes preferiram devolver a questão ao Judiciário para que o Supremo diga se o presidente exorbitou o poder regulamentar e se a justificativa fiscal atende ao texto constitucional, bem como para que examine se o Decreto Legislativo 176/2025 é constitucional ou não.
A conciliação não agregou eficiência nem legitimidade: apenas retardou o controle de constitucionalidade e expôs o STF à crítica de abdicar de sua função decisória. Afinal, mais do que poder declarar a compatibilidade ou não de um ato normativo com a Constituição, é dever constitucional da corte fazê-lo.
O acordo no caso dos descontos do INSS: aparência de solução, erosão de direitos
O caso do INSS aparentava ser um bom exemplo de conciliação feita pelo STF. Somente parece, pois não é. Primeiro porque houve um atropelo na condução da causa. Existem duas ações sobre o tema no STF. Uma com o ministro André Mendonça (ADPF 1224) e outra com o ministro Dias Toffoli (ADPF 1236).
A despeito da relação entre elas, nada foi feito em conjunto. Tudo foi feito individualmente. Como o Supremo não se vê como órgão colegiado e nem os ministros como corredores de uma mesma equipe, larga primeiro quem primeiro toca a sua ação.
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Na ADPF 1236, a União, o Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU), o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) firmaram acordo, sem a participação de nenhuma entidade que represente os milhares de aposentados lesados, para viabilizar o ressarcimento dos valores descontados indevidamente, o qual foi homologado pelo ministro relator[6]. Conforme o parágrafo segundo da cláusula sétima[7] do acordo homologado, os valores serão devolvidos, mas o INSS estará isento de repetição de indébito e de pagamento de danos morais.
A suposta voluntariedade por parte do aposentado lesado para aderir à proposta de ressarcimento do acordo, firmado sem a sua participação, contrasta com a decisão de homologação do acordo que acatou o pedido da Advocacia-Geral da União para que se suspenda o andamento dos processos em curso e das sentenças de mérito já proferidas[8].
Vale dizer, se a adesão é voluntária, por que os processos judiciais daqueles que não querem aderir ao acordo, exatamente porque é benéfico somente ao INSS, que se exime da responsabilidade pelos danos morais e devolução em dobro, estão suspensos?
Por que as sentenças de mérito já prolatadas garantindo a condenação do INSS em danos morais e reparação em dobro também estão suspensas? E por quanto tempo? Em suma: por que um acordo firmado de forma anômala em uma ação de controle tem eficácia àqueles que não o subscreveram e não querem aderir aos seus termos?
Lições cruzadas: por que o STF erra ao priorizar conciliações
Os dois exemplos ilustram, na prática, as dez perguntas críticas que ainda continuam sem resposta: cabe conciliar em qualquer caso? Em qualquer tipo de ação? É possível transacionar no controle abstrato de constitucionalidade? Quem concilia? A conciliação acontece em nome próprio do agente, de um grupo ou de todos os afetados?
Como se define e se afere representatividade de quem concilia? É possível conciliar sobre direitos fundamentais indisponíveis? De minorias e grupos vulneráveis também? Quem arbitra a conciliação – o ministro, seu juiz auxiliar, alguém diferente pode ser escolhido pelas partes? Qual é o papel que resta ao plenário?
Enquanto as respostas permanecem nebulosas, a prática conciliatória acaba por desvirtuar a separação de funções. Cada vez mais, o STF assume um papel quase legislativo ao editar compromissos normativos, enquanto o Executivo e o Congresso terceirizam conflitos políticos. Mesmo os bons acordos, quando parecem ter efeitos positivos, podem gerar um efeito negativo ainda não sentido – acordos singulares dificultam a formação de precedentes jurídicos. Podem ser desfeitos por mudanças de governo, de composição da corte e deixam de lado o principal tipo de linguagem e argumentação – a jurídica (deontológica).
Os casos do IOF e do INSS demonstram que, dando certo ou errado o acordo, participam e transacionam os que possuem poder e acesso à corte. Grupos sem lobby tendem a ficar de fora e sentam-se à mesa atores institucionais e corporativos com poder de influência e barganha. Nesse cenário, como visto no caso do INSS, direitos fundamentais – individuais e coletivos – convertem-se em moeda de troca.
Se tudo pode ser negociado numa mesa de conciliação no Supremo Tribunal Federal, então o STF se converte no terceiro turno da política. Ministros passam a ser pressionados ou passam a se voluntariar para costurar avenças que deveriam ser resolvidas pela política ordinária, com as negociações de praxe (afinal, lá sim é espaço da negociação e da conciliação).
Conciliar e mediar, até aqui, não tem sido constitucional e nem legal no âmbito das ações de controle abstrato. Não é diálogo institucional: é negociação da Constituição. Não é busca cooperativa da melhor interpretação da Constituição: é busca de acordo sobre o conteúdo e a aplicação da Constituição.
[1] GODOY, Miguel Gualano de. O Supremo contra o processo constitucional: decisões monocráticas, transação da constitucionalidade e o silêncio do Plenário. Revista Direito e Práxis, v. 12, p. 1034-1069, 2021; GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo. Belo Horizonte: Arraes, 2022. ASPERTI, Maria Célia de Araújo; CHIUZULI, Danieli Rocha. Supremo conciliador? Análise dos casos encaminhados à conciliação no âmbito do supremo tribunal federal. REI – Revista Estudos Institucionais, [s. l.], v. 10, n. 2, p. 450–499, 2024; GODOY, Miguel Gualano de. A nova fronteira do STF: conciliação e mediação. JOTA, Brasília, 15 jan. 2025. Disponível em: <https://www.jota.info/stf/supra/a-nova-fronteira-do-stf-conciliacao-e-mediacao>. Acesso em: 15 jul. 2025; LIMA, Caroline S. Primeiras reflexões sobre a jurisdição constitucional consensual. Revista Contemporânea, v. 4, n. 2, 2024, p. 01-16; BEÇAK, Rubens; FERNANDES, Lucas Paulo. A autocomposição em controle de constitucionalidade: da solução do conflito ao problema deliberativo. In: BASTOS, Antonio Virgilio Bittencourt; BORGES-ANDRADE, Jairo Eduardo; ZANELLI, José C. Autocomposição em perspectiva […]. Montes Claros: Editora Unimontes, 2024; SOUZA JÚNIOR, Enivaldo R. de; BINDA, Rosana Júlia. Conciliação e mediação no âmbito da Suprema Corte: mudança de paradigma e desjudicialização processual. Revista de Doutrina Jurídica, Brasília, v. 113, n. 00, 2022. BRITO, Leonardo Soares. Processo Constitucional e Supremo: Disfuncionalidades e Propostas de Reformas. Londrina: Editora Thoht, 2025.
[2] TAVARES, Maria Hermínia. O Supremo conciliador. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 jul. 2025. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2025/07/o-supremo-conciliador.shtml>. Acesso em: 15 jul. 2025; OLIVEIRA, Arthur Guimarães de. STF investe em conciliação e estabelece novo modelo de ‘não decisão’ no tribunal. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 dez. 2024. Disponível em: <https://www1.fo- lha.uol.com.br/poder/2024/12/stf-investe-em-conciliacao-e-estabelece-novo-modelo-de-nao-decisao-no-tribu- nal.shtml>. Acesso em: 16 jul. 2025.
[3] MITIDIERO, Daniel F.; MARINONI, Luiz Guilherme B.; SARLET, Ingo W. Curso de direito constitucional. 12. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. ISBN 9786553624771. p. 476.
[4] Para aprofundamento da disfuncionalidade processual da transação abstrata de (in)constitucionalidade, ver: BRITO, Leonardo Soares. Processo Constitucional e Supremo: Disfuncionalidades e Propostas De Reformas. 2025. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2025, p. 79-91. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/handle/1884/95955>
[5] ROHAN, Lucas. Fórum de Lisboa foi convertido em “sala de situação” da crise do IOF. Valor Econômico, São Paulo, 04 jul. 2025. Disponível em: <https://valor.globo.com/politica/noticia/2025/07/04/forum-de-lisboa-foi-convertido-em-sala-de-situacao-da-crise-do-iof.ghtml>. Acesso em: 16 jul. 2025.
[6] Decisão disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15378368128&ext=.pdf
[7] “Cumpridas as obrigações previstas neste acordo, o INSS estará eximido do pagamento de danos morais e da devolução de valores em dobro, diante da inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, tanto nas ações coletivas que tenham por objeto a mesma controvérsia, quanto nas ações individuais cujos beneficiários aderirem, individualmente, à proposta de composição”.
[8] “[…] como consectário lógico da referida homologação, determinado a suspensão do andamento dos processos e da eficácia das decisões que tratam de controvérsias pertinentes aos requisitos, fundamentos e extensão da responsabilidade da União e do INSS pelos descontos”.