Uma Corte Interamericana consultiva e deliberativa

Uma parte significativa do debate interamericano da última década deslocou‑se das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) para as suas opiniões consultivas. Isso se explica porque a ampliação da agenda interamericana recente foi mais sólida e consistente na via consultiva do que na contenciosa.

De um lado, uma das últimas novidades contenciosas consistiu na ampliação da interpretação do artigo 26 da Convenção para incorporar os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA). Entretanto, essa mutação convencional foi muito debatida e produziu poucos resultados significativos. Além disso, a jurisprudência contenciosa interamericana recolheu‑se novamente em casos importantes, mas que retomam os parâmetros já traçados e elaborados pela Corte IDH há muitos anos.

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Em sentido diverso, a ampliação consultiva tem sido prolífica e intensa. Alguns dos temas fundamentais da vida humana, social e política latino‑americana chegaram progressivamente pela via consultiva: a reeleição presidencial que corrói a democracia; os direitos das pessoas presas, cuja proteção pouco interessa aos órgãos políticos; a proteção dos direitos das crianças; a situação dos migrantes e as consequências de denunciar a própria Convenção. E nos próximos anos virão temas fundamentais, como as obrigações em matéria de tráfico de armas, o direito ao cuidado e a democracia interamericana.

Uma das consequências mais importantes desse fenômeno foi a transferência da eficácia coercitiva para a eficácia consultiva da Corte IDH. Isso só foi possível graças às consultas tanto da Comissão IDH quanto dos Estados. Estes últimos — em alguns casos de boa‑fé e em outros com pretensões de instrumentalização geopolítica — aumentaram os pedidos de opiniões consultivas à Corte IDH.

Com isso, não apenas contribuem para a criação de parâmetros comuns pela via não contenciosa, mas também aumentam a legitimidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso porque a Corte IDH pode afirmar que só se pronuncia, nesses casos, precisamente porque os próprios Estados lhe solicitaram.

No meio de tudo isso destaca‑se um aspecto procedimental que possui enorme relevância e impacto. O procedimento consultivo admite padrões deliberativos qualificados em relação ao processo contencioso. Uma prática deliberativa judicial paradigmática ocorreu no processo de discussão da Opinião Consultiva 32 sobre emergência climática e direitos humanos. Nesse caso, a Corte saiu de seu belo edifício escondido na maravilhosa Costa Rica com o objetivo de percorrer países‑chave da América Latina.

O resultado foi um aumento inédito tanto no número quanto na diversidade das pessoas que intervieram para propor parâmetros de proteção ao meio ambiente equilibrado com enfoque regional e global. Isso incluiu destacados amici curiae provenientes de tribunais e instituições nacionais de direitos humanos cuja independência do Poder Executivo lhes permitiu propor parâmetros mais sólidos do que aqueles que costumam sugerir as representações estatais.

A isso somou‑se uma equipe intelectual e jurídica da mais alta qualificação da Corte IDH, aberta a ouvir as considerações e proposições. Essa combinação de fatores explica por que a Opinião Consultiva 32/2025 é um documento técnico rigoroso, um mapa preciso com uma rota inevitável e uma decisão judicial transformadora com amplo sentido humano e de respeito pela vida em comunidade.

Trata‑se de um verdadeiro exercício de diagnóstico sobre as causas e os vetores da crise climática com enfoque regional e impacto global. Ao mesmo tempo, é uma síntese completa das normas que configuram o direito do clima e da sempre difícil relação entre os investimentos e a proteção do ambiente. Essa Opinião Consultiva é um lembrete de que quem menos contribuiu para causar a crise climática é quem mais sofre os seus efeitos. Em meio a essa que pode ser a maior injustiça da nossa era, a Corte Interamericana fala com a maior clareza possível em meio à angústia pela sobrevivência comum.

Ainda assim, é possível dar um passo a mais para ampliar a deliberação interamericana. É fundamental estender o direito de consulta perante a Corte IDH, pelo menos, aos tribunais constitucionais e às cortes supremas nacionais. Isso é essencial para integrar os juízes constitucionais e supremos dos Estados (juízes interamericanos domésticos) em uma conversa institucional direta com a Corte IDH.

O mesmo deveria ocorrer com as instituições nacionais de direitos humanos, as defensorias públicas e os ombudsperson. Uma mudança que poderia advir por decisão dos Estados ou por uma mutação na interpretação judicial do artigo 64 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Os tribunais constitucionais e as cortes supremas nacionais são, por definição, fóruns deliberativos multidimensionais. Como órgãos colegiados, mantêm uma deliberação externa constante com as partes que a eles recorrem em busca de tutela judicial e articulam argumentos jurídicos, empíricos e axiológicos e deontológicos que refletem a pluralidade social.

Paralelamente, desdobram uma deliberação interna — às vezes pública, às vezes reservada — entre magistradas e magistrados que devem construir maiorias, redigir votos concorrentes ou dissidentes e, em última instância, plasmar razões comuns no acórdão.

Finalmente, exercem uma deliberação posterior ao julgamento ao vigiar seu cumprimento e interpretar os próprios precedentes diante de novas causas. Esse triplo ciclo deliberativo converte as cortes nacionais em espaços privilegiados para irradiar e receber os parâmetros convencionais de direitos humanos.

Com essa base normativa, deliberativa e institucional, estender‑lhes formalmente o ius petendi consultivo perante a Corte IDH não apenas robusteceria o controle de convencionalidade doméstico, mas também dotaria a Corte IDH de insumos jurisprudenciais de altíssima qualidade, baseados na experiência comparada de cada país.

O intercâmbio direto entre cortes — sem mediações governamentais potencialmente restritivas — fomentaria uma rede dialógica que fortaleceria simultaneamente a autoridade consultiva da Corte IDH e a coerência do ius constitutionale commune latino‑americano.

O resultado esperado é uma melhoria qualitativa na deliberação interamericana, um aumento do acervo normativo compartilhado e um passo decisivo rumo a uma integração jurídica que coloque os direitos humanos e a proteção ambiental no centro do constitucionalismo contemporâneo da região. Já contamos com suporte normativo para esse passo. Não é demasiado, e sim corajoso.

Vivemos a era consultiva dos tribunais internacionais. O Tribunal Internacional do Direito do Mar, a Corte Interamericana, a Corte Internacional de Justiça e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos — nessa ordem — estabeleceram, nos dois últimos anos, parâmetros fundamentais pela via consultiva.

Um ponto em comum tem sido a proteção do meio ambiente equilibrado. Mas, do lado interamericano, contamos com a prova empírica de que uma maior abertura e deliberação supre déficits de informação, resolve desacordos de forma razoável e aumenta a qualidade epistêmica das decisões judiciais. Isso não é pouco quando se trata de contribuir de forma transformadora para evitar o desaparecimento da espécie.

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