Aumento do IOF, taxação de Trump e o risco de degradação democrática

Quando o PSOL recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a derrubada, pelo Legislativo, do decreto do Executivo que aumentou o IOF, muitos foram os deputados da oposição que se opuseram à iniciativa desse partido, que apoia o atual governo.

Como o PSOL tem apenas 13 deputados na Câmara, a justificava dos parlamentares oposicionistas foi no sentido que os recursos judiciais impostos por agremiações minoritárias se sobrepõem à vontade da maioria no parlamento, gerando com isso insegurança jurídica e desvirtuando a própria democracia.

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A discussão não é nova. Entre 1989 e junho de 2025, por exemplo, o número de ações interpostas no STF por partidos políticos questionando iniciativas em curso passou de 472 para 1.892. Desde a posse de Lula, em 2023, o PSOL impetrou 37 ações. Em seguida vêm o PT, com 35 ações; o PSB, com 22; o PL, com 18; o PC do B, com 16; o Novo, com 14; e o PSDB, com 9.

Como os números são expressivos, alguns líderes dos partidos com grandes bancadas anunciaram que proporão um projeto cujo objetivo é permitir que só as bancadas partidárias com mais de 20% do parlamento possam interpor no STF ações de inconstitucionalidade contra determinadas decisões do Executivo. 

Essa proposta, contudo, suscita vários problemas. Um deles decorre do fato de que algumas agremiações com grandes bancadas podem ser resultantes de maiorias acidentais, carecendo de consistência programática, de credibilidade e de legitimidade.

Nesse sentido, basta ver a bancada bolsonarista eleita no pleito de 2018, na qual alguns de seus membros jamais esconderam sua visão de mundo autoritária e defenderam o golpe de 8 de janeiro de 2023 contra a democracia. Entre as agremiações que mais os criticaram e neutralizaram suas iniciativas fundamentadas com base nos discursos de ódio estão justamente as pequenas bancadas. 

Desde a derrota do fascismo e do nazismo, na década de 1940, o constitucionalismo evoluiu muito para preservar a democracia e suas garantias. Na Alemanha, por exemplo, a ordem constitucional que emergiu com a Lei Fundamental de Bonn de 1949 estabeleceu que a separação dos Poderes, o voto secreto universal, as liberdades públicas e as garantias fundamentais não podem ser suprimidas nem mesmo por emendas constitucionais. Décadas depois, a Constituição brasileira promulgada após a queda da ditadura militar caminhou nessa mesma linha, aprovando as chamadas cláusulas pétreas.

Nessas mesmas décadas, outro conceito importante que se consolidou no constitucionalismo – a necessidade que as democracias têm de uma “sentinela contra os riscos de tiranias das maiorias” – surgiu originariamente nos Federalist Papers, por iniciativa de Alexander Hamilton.

Trata-se da ideia de que, para evitar o risco de recessões democráticas, preservar valores básicos forjados desde o Iluminismo, assegurar a eficácia dos direitos civis fundamentais e garantir a segurança dos cidadãos, tanto o Poder Legislativo quanto os tribunais superiores do Poder Judiciário deveriam assumir um papel contramajoritário na vida social e política. 

Entre outras palavras, essa é a ideia de que a democracia representativa, além de ter uma dimensão procedimental, também implica uma dimensão substantiva, que envolve fatores como tolerância mútua, interação entre justiça e medidas voltadas à redução da desigualdade social.

Nesse sentido, os parlamentos devem preservar o poder de iniciativa legislativa das agremiações minoritárias, permitindo-lhes agir quando direitos fundamentais são suprimidos por parlamentares eleitos pela maioria absoluta do eleitorado. Por seu lado, os tribunais superiores devem exercer o papel de contrapeso em seus julgamentos, agindo a um só tempo como um fórum de normas e valores constitucionais e de razão pública. 

De que modo se dá essa ação no funcionamento institucional do país? Ela ocorre, por exemplo:

pelo direito de cada pessoa a igual respeito e consideração com as demais pessoas e a ter suas opiniões ouvidas e consideradas;
por meio da invalidação de atos e decisões do Legislativo e do Executivo que violem a Constituição;
pelo reconhecimento da representatividade democrática mediante a proteção dos direitos das minorias;
pela neutralização do risco de que garantias e direitos sejam desvirtualizadas pela vontade popular; e
pelo radicalismo político e por discursos morais que contrapõem os “puros” aos “impuros”. 

Que lições tirar da funcionalidade institucional nos dias de hoje, principalmente após o golpe de 8 de janeiro de 2023 e da crise política causada pela expansão das emendas parlamentares, agravando o problema das contas públicas e levando o governo federal a tentar a aumentar a arrecadação por meio do aumento do IOF? 

Uma dessas lições é clara. Segundo ela, a crescente judicialização das decisões do Legislativo e do Executivo por iniciativa do aluvião de recursos judiciais impetrados por partidos com pequenas bancadas parlamentares mostra que, atualmente, uma ruptura democrática não decorre apenas de insurreições autoritárias e de intervenções militares.

Ela decorre, também, da desinformação, do despreparo de parte do eleitorado, do oportunismo e das simplificações populistas dos políticos, da ineficiência dos governantes e da incompetência das lideranças partidárias para negociar acordos capazes de assegurar padrões mínimos de governabilidade.

É justamente isso que está levando o Brasil a uma situação paradoxal: os desdobramentos do 8/1/23 garantiram – por meio de prisões e condenações judiciais civis e militares golpistas – que a democracia brasileira permanecesse intacta no plano procedimental.

Já no plano substantivo, contudo, a democracia brasileira enfrenta dificuldades crescentes, envolvendo até mesmo pressões políticas do governo dos Estados Unidos por meio de retaliações tarifárias, que ameaçam o bom funcionamento de suas instituições. 

O problema da proliferação de recursos judiciais impetrados por pequenos partidos no STF e as pressões sobre o Brasil feitas pelo governo americano é que eles abrem caminho para o risco de corrosão da democracia. E quanto maior for esse risco, como afirma o respeitado filósofo espanhol Daniel Innerarity[1] ao analisar o futuro político de países europeus e americanos, a principal ameaça à continuidade da democracia no mundo contemporâneo está na permanência de sua simplicidade institucional e funcional. Por isso, a partir dos anos 2000 vários procedimentos e valores da democracia representativa foram deixando de funcionar de modo equilibrado.

Segundo Innerarity, a simplicidade dos procedimentos lineares, binários e moralizantes inerentes ao modelo de democracia que prevaleceu nos tempos da sociedade industrial (entre 1950 e 1980) foi posta em xeque a partir do avanço do multilateralismo e da economia informacional, após 1990.

Em outras palavras, esse modelo de democracia ficou sem condições de enfrentar de modo eficiente a sobrecarga dos problemas surgidos em decorrência da complexidade do século 21. Assim, à medida que os problemas econômicos, os problemas sociais e as questões políticas se tornaram cada vez mais complexos, isso levou o modelo de democracia do século passado a um lento processo de degeneração operacional nestas duas últimas décadas. 

No tumultuado e tenso Brasil de hoje, a questão fiscal, o avanço do Legislativo nas prerrogativas orçamentárias do Executivo, a descaracterização do presidencialismo, a conversão de um imposto regulador em tributo arrecadador e a chantagem feita por Donald Trump com o objetivo de anistiar Jair Bolsonaro fazem parte dessa complexidade.

E ela só poderá ser tratada com eficácia quando o país superar a simplicidade institucional por meio do desenvolvimento de uma democracia com novas estruturas jurídicas, múltiplos níveis de organização, novos padrões de responsabilização, novos procedimentos políticos e novos processos decisórios. 

Por mais que esse processo leve tempo para amadurecer, só assim o país terá uma democracia sólida e capaz de neutralizar as situações de risco como as que está vivendo.

[1] Na teoria de la democracia compleja: governar en el siglo XXI, Barcelona, Galaxia Gutemberg, 2020

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