A promessa constitucional sob ataque

Todo ano, o instituto sueco V-Dem publica um relatório detalhado sobre o estado global da democracia. No de 2025, os dados são alarmantes: em escala mundial, a democracia está em retração. Ainda que se possam apontar críticas aos critérios adotados e às formas de interpretação dos dados, o relatório oferece elementos fundamentais para refletirmos sobre o futuro do constitucionalismo democrático – e sobre o lugar do Brasil nesse processo.

Pela primeira vez em 20 anos, há mais autocracias (91) do que democracias (88) no mundo. Em termos populacionais, 3 em cada 4 pessoas vivem sob regimes autocráticos – o maior índice desde 1978. Para grande parte da população global, os ideais democráticos tornaram-se um referencial distante, desvinculado da experiência cotidiana.

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Nos termos do relatório, os brasileiros integram a pequena parcela dos 6% da população mundial que vive em países em processo de redemocratização. Após um ciclo de autocratização iniciado com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e aprofundado pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018, os indicadores voltaram a melhorar a partir de 2022. Ainda assim, o país não recuperou os níveis de democratização anteriores.

Esse processo revela uma frustração que é estrutural. A Constituição de 1988 prometeu uma sociedade democrática, justa, plural e igualitária. Mas o descompasso entre as promessas desse texto e a realidade de uma sociedade desigual e de instituições oligárquicas produziu um ciclo de descrença, cinismo e frustração. As promessas constitucionais não foram suficientemente cumpridas. E foi nesse vazio que projetos autoritários ganharam força.

O bolsonarismo soube explorar, com eficiência, essa frustração difusa. Seu discurso rompeu com a linguagem da Constituição de 1988 e se apresentou como alternativa a um sistema percebido como ineficaz e corrupto. A derrota eleitoral de Bolsonaro, embora importante, não basta para garantir a consolidação democrática. A promessa da Constituição de 1988 precisa ser atualizada e tornada novamente crível – especialmente para os grupos sociais que mais sofreram com sua frustração.

O Brasil se soma a países como Polônia e Bolívia, que, segundo o V-Dem, passaram por um “movimento em U”: períodos de autocratização seguidos por tentativas de recuperação democrática. Esse processo, entretanto, acontece em um contexto global hostil à democracia.

De forma sistêmica, o relatório identifica o que chama de terceira onda de autocratização, iniciada em 1985. Atualmente, 45 países estariam engolfados por esse processo, o que representa cerca de 40% da população mundial vivendo sob algum grau de regressão democrática. O autoritarismo se tornou uma epidemia política, em expansão global.

Os instrumentos usados para corroer a democracia já são bem conhecidos: repressão à sociedade civil, ataques à imprensa, perseguição a opositores, restrições à liberdade de expressão, desinformação eleitoral, desmonte de controles institucionais e ataques ao Estado de Direito. Todos foram extensivamente utilizados durante o governo Bolsonaro. No entanto, o fenômeno não se limita ao Brasil.

O relatório destaca o caso dos Estados Unidos sob a segunda gestão de Donald Trump como um dos mais graves. Após uma campanha abertamente autoritária, Trump adotou medidas em escala e velocidade inéditas. Seus ataques aos freios e contrapesos, à imprensa, à burocracia estatal e aos direitos fundamentais têm destruído as bases da democracia constitucional estadunidense. A decisão de aplicar tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, em resposta às ações contra Jair Bolsonaro, evidencia que a ofensiva contra instituições democráticas é internacional.

Durante o século 20, os Estados Unidos exportaram modelos constitucionais como símbolo de estabilidade democrática. Hoje, essa lógica se inverte: o populismo autoritário é o novo produto de exportação. Trump não esconde o desejo de fortalecer lideranças autoritárias alinhadas aos seus interesses e de influenciar o cenário institucional de países democráticos. Sua estratégia será observada atentamente por outros líderes autoritários, que, apoiados por ele, aprenderão com seus erros e acertos na tentativa de minar suas próprias democracias.

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Esse cenário internacional se combina com um mal-estar democrático mais amplo: alta concentração de renda, captura da esfera pública por empresas transnacionais de tecnologia, polarização e desinformação. O resultado é o esvaziamento da política democrática como espaço de solução de conflitos e o enfraquecimento na crença nas promessas que legitimam ordens constitucionais.

A frustração com essas promessas – especialmente entre aqueles que nunca viram seus direitos efetivamente garantidos – ajuda a explicar por que a democracia constitucional, hoje, está na defensiva. Blindar instituições não é suficiente. É preciso reconstruir a confiança pública na democracia constitucional. Sem isso, o terreno continuará fértil para os projetos autoritários que se proliferam pelo mundo.

O retorno de Trump ao poder, com sua estratégia rápida e letal de ataque às instituições e aos direitos, nos Estados Unidos e no mundo, é um aviso do que pode acontecer por aqui. Nesses termos, o século 21 se apresenta como a era do colapso da democracia constitucional ou de sua reinvenção radical – e, como aponta o relatório, o Brasil será um dos laboratórios desse processo.

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