A recente divulgação de ataques cibernéticos a instituições financeiras integradas ao sistema Pix trouxe à tona um dilema relevante de governança pública: qual é o grau de efetividade e qualidade da supervisão bancária exercida pelo Banco Central, especialmente no âmbito de seu arranjo de pagamentos e de sua capacidade de prevenir crimes digitais?
O tema vem ganhando ainda mais relevância após discussões ocorridas no início deste ano em torno da normativa federal que previa maior monitoramento das operações do Pix — especificamente, a Instrução Normativa RFB 2.219/24, posteriormente revogada pela IN RFB 2.247/25.
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Embora o argumento oficial fosse o combate a fraudes e o aumento da eficiência do sistema financeiro, houve percepção social de que se tratava de medida invasiva, o que gerou forte reação nas redes sociais e na mídia, levando o governo a reavaliar a iniciativa.
Esses episódios evidenciam a necessidade de um debate mais aprofundado e técnico sobre a atuação de supervisão e controle do Banco Central, especialmente no que diz respeito à segurança do sistema financeiro e à capacidade de fiscalização adequada das instituições privadas que nele operam.
Os dados oficiais refletem essa preocupação. Segundo informações do próprio Banco Central, apenas no ano de 2023, o sistema Pix registrou R$ 4,9 bilhões em fraudes envolvendo golpes, estelionatos e transferências não autorizadas. Em 2024, até abril, a média mensal de notificações de fraudes saltou para aproximadamente 390 mil casos — aumento superior a 70% em relação ao ano anterior.
Além disso, nos últimos dois anos, casos de vazamento de chaves Pix em diferentes instituições financeiras demonstraram que as vulnerabilidades são de caráter sistêmico e não meramente pontual. Evidentemente, essa realidade não se deve apenas à atuação das instituições financeiras privadas: há aspectos de desenho da plataforma e de supervisão regulatória que também precisam ser aprimorados.
Trata-se de cifras expressivas para um sistema cuja proposta inicial era democratizar e agilizar pagamentos com segurança, mas que, se não adequadamente calibrado, pode gerar riscos substanciais para empresas, consumidores e para o próprio Tesouro Nacional.
Como em qualquer política pública, há escolhas e restrições de recursos. A opção por um arranjo governamental de pagamentos trouxe inegáveis benefícios em inclusão e eficiência, mas também exige foco contínuo na governança e nos mecanismos de supervisão.
Nesse contexto, episódios como o das Lojas Americanas — em que se criticou a ausência de atuação preventiva da autoridade monetária diante de sinais de dificuldades financeiras da companhia — ou questionamentos sobre processos de aquisição bancária recentes, como o do Banco Master, revelam a importância de aprimorar mecanismos de controle e análise.
Outro aspecto que merece atenção são as notícias de utilização indevida de instituições de pagamento reguladas pelo Bacen para práticas ilícitas, como lavagem de dinheiro. Esses casos reforçam a relevância de revisitar os processos de autorização e supervisão.
Diante disso, cabe perguntar: como são alocados os recursos dedicados à regulação e segurança do sistema financeiro? Conforme dados públicos, o orçamento anual do Banco Central para 2024 ultrapassa R$ 3,2 bilhões. No entanto, informações obtidas via Lei de Acesso à Informação pela Associação Brasileira de Liberdade Econômica (ABLE) indicam que apenas uma fração desse valor se destina especificamente à prevenção de ataques cibernéticos e outros crimes digitais — exatamente um dos pontos mais sensíveis do sistema Pix.
Sob a ótica da Análise Econômica do Direito, parece-nos um caso típico de desafio de governança institucional. Naturalmente, o BC lida com diversas atribuições — da política monetária à regulação bancária — e, como em qualquer organização complexa, há riscos de sobrecarga e de alocação subótima de prioridades e recursos. Daí a importância de estruturar mecanismos claros de definição de prioridades, de mensuração de resultados e, sobretudo, de prestação de contas à sociedade.
Importante ressaltar que o objetivo não é desmerecer os avanços inegáveis do Banco Central, incluindo o desenvolvimento do Pix, que se consolidou como referência mundial. Mas exatamente por seu protagonismo e relevância, é necessário assegurar que sua atuação também seja objeto de acompanhamento público, institucional e técnico qualificado.
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Em um momento em que o Congresso Nacional discute temas sensíveis relacionados ao Banco Central, parece oportuno que sociedade civil, órgãos de controle — como o TCU —, entidades privadas e a imprensa também atentem para as questões de governança e supervisão da autarquia.
Como são definidas suas prioridades? Quais métricas são adotadas para avaliar a efetividade de sua supervisão? E, sobretudo, como garantir accountability, transparência e eficiência na alocação dos recursos públicos sob sua gestão? Quais seriam os potenciais riscos fiscais associados a um arranjo de pagamentos estruturado sob controle estatal?
Talvez os problemas recentes envolvendo o Pix sejam apenas um sintoma de disfunções mais amplas de governança. Para que o Brasil consolide um sistema financeiro moderno, inclusivo e seguro, é essencial que os próprios mecanismos de supervisão estejam sujeitos a padrões elevados de controle, transparência e aprimoramento institucional.
Como bem assinala a literatura econômica, instituições sólidas dependem não apenas de boas intenções, mas de incentivos bem calibrados, mecanismos de responsabilização e transparência. Nesse sentido, o Banco Central deve continuar sendo não apenas referência, mas exemplo de boas práticas institucionais.
Revisitar criticamente, mas de forma propositiva, a governança do arranjo Pix e do próprio Banco Central é um passo necessário — com equilíbrio, respeitando as conquistas já obtidas, e focando no aperfeiçoamento contínuo que deve nortear toda política pública em uma democracia madura.