O IOF está no vórtice dos três poderes brasileiros. Executivo e Legislativo controvertem, no STF, acerca da nova disciplina do IOF estabelecida nos Decs. 12.466 e 12.467 e sobre a anulação deles pelo Dec. Leg. 176, todos de 2025[1]. Três aspectos do conjunto de casos são progressivamente excepcionais: o Congresso Nacional baixou raro decreto legislativo para sustar os atos executivos; o relator no STF reputou inconstitucionais os três atos normativos citados e marcou audiência de conciliação sobre a indisponível validade de normas[2].
O debate gira em torno de uma grande premissa de direito material aceita pelas partes: o IOF teria finalidade exclusivamente extrafiscal, ou seja, só serviria como instrumento para a intervenção da União na economia. Logo, seu emprego para o aumento de arrecadação seria ilícito. O debate residual consistiria, assim, em saber se o desvio de finalidade arrecadatório se consumou ou se os decretos alteraram o tributo para remodelar o mercado de crédito.
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O relator no STF adotou a premissa referida, verificou, à primeira vista, a adulteração da finalidade do tributo e, portanto, suspendeu os atos do Executivo. E como o art. 49, VI da CR só deferiria ao Parlamento o controle de legalidade, mas não de constitucionalidade abstrata dos atos do Executivo, privativa do STF, também suspendeu o decreto legislativo.
Inexistência de aresto do Pleno físico do STF
Decisões do STF têm sido invocadas para afirmar e negar o caráter exclusivamente extrafiscal do IOF. Vejam-se brevemente tais julgados, para ver se podem ser considerados precedentes do problema discutido:
a ADI 5.277 e o RE 1.043.313 não se prestam a tanto, por versarem sobre a alteração de contribuições para o PIS, Pasep e a Cofins, ou seja, sobre tributos vinculados e, portanto, conceituados em razão de sua finalidade específica. Logo, os acórdãos nada dizem acerca de impostos, cuja ausência de finalidade particular os define (art. 16 do CTN). Menos ainda, quando as normas regentes de ambas as espécies de tributos são diversas[3]. A menção ao art. 153, § 1º, da CR é mero obiter dictum.
O problema tratado no RE 225.602 dizia respeito à exigência de lei complementar para que se fixassem os limites dos impostos do art. 153, § 1º. A referência, de passagem, a seu caráter extrafiscal não era o tema apreciado e, por isso, não integrou a ratio do acórdão.
O RE 570.680 analisou o art. 153, § 1º, em aspecto diverso do ora estudado, pois lá se discutia se o Presidente da República poderia delegar a atribuição da citada norma constitucional. A vinculação entre a mobilidade da alíquota por ato executivo e a finalidade extrafiscal constitui obiter dictum, cujos termos, aliás, não permitem sua caracterização como finalidade exclusiva, algo que nem se pôs ao exame[4].
Tampouco o assunto focado no RE 788.064 precisou discutir a suposta limitação teleológica do IOF, por ter negado o pressuposto de fato da deturpação do tributo, como se lê no voto condutor do julgado: “não há nenhuma evidência de que a majoração do IOF, por meio da Portaria MF 348/1998, objetivou modificar a natureza jurídica do imposto, de modo a desviar sua finalidade e transformá-lo em tributo com arrecadação vinculada. Nesse ponto, saliento não ser possível afirmar, concretamente, que os recursos provenientes dessa majoração foram efetivamente destinados para os mesmos fins da CPMF”. Se algo dele se puder extrair, será contra a vinculação finalística aqui examinada: “além disso, nada obsta que perdas de arrecadação sejam supridas por majorações de outros encargos”.
Mutatis mutandis é o que se vê no REAgRg 800.282: “não há qualquer evidência de que a majoração do IOF, perpetrada pela Portaria MF 348/1998, teve o condão de modificar a natureza jurídica do imposto, desviando sua finalidade e transformando-o em tributo com arrecadação vinculada. Os argumentos levantados pela agravante estão embasados apenas em meras suposições, carecendo de efetivo fundamento jurídico”.
O padrão de rejeição factual da tese repete-se na decisão singular no RE 1.472.012: “não há nenhuma evidência de que a majoração do IOF, por meio do Decreto nº 10.791, de 2021, objetivou modificar a natureza jurídica do imposto, de modo a desvirtuar sua finalidade e transformá-lo em tributo com arrecadação vinculada”. Ao contrário, ali se diz que “a receita de impostos compõe as reservas necessárias para despesas de forma geral, não havendo que se presumir que a majoração do IOF tenha ocorrido necessariamente ‘com o fim de sustentar o ‘Auxílio Brasil’”.
A decisão individual proferida no RE 1.480.048 não analisou o art. 153, § 1º, mas outras normas constitucionais. Assim, também configura obiter dictum a observação de que “eventual prevalência de finalidade extrafiscal adotada por um tributo não impede, até como consequência lógica, sua função arrecadatória, em menor ou maior grau”.
O RE 583.712 apreciou as questões da delimitação da hipótese de incidência, da anterioridade e da irretroatividade da lei do IOF na Tese 102, anódina ao suposto caráter apenas extrafiscal do tributo.
O RE 590.186, decido no Pleno virtual, negou, em termos conceituais, a exclusividade do fim extrafiscal do IOF, contra a concepção tida por pacífica no STF: “… a Constituição não impõe, como elemento legitimador do imposto em si, sua função Pelo contrário, a doutrina reconhece que a classificação dos tributos em extrafiscais ou arrecadatórios se dá pela preponderância da função, não pela exclusividade. […]. Assim, não se há de falar em exclusividade da função regulatória do IOF”.
A ausência de precedente específico do Pleno tradicional do STF aconselha a discussão da matéria por onde se parou – a tentativa inicial de se resolver o problema em termos conceituais.
O IOF e a extrafiscalidade: contra uma “jurisprudência dos conceitos” tributária
A estrutura da tese de que o IOF só se presta à finalidade extrafiscal direito material tem tanta ou mais relevância do que seu mérito, por evidenciar abordagem tão difundida quanto imprópria de problemas de direito positivo.
Certos exames da validade do tributo têm ocorrido apenas na perspectiva do conceito jurídico de extrafiscalidade. O endosso ou o repúdio das normas executivas e da parlamentar são decorrência exclusiva da afirmação ou negação da índole extrafiscal do IOF.
As petições iniciais das demandas valem-se, em medida variável, dessa estrutura argumentativa. Uma delas estabelece a conexão aludida de modo mais direto[5], ao passo que as demais avançam um pouco mais no parâmetro normativo.
A fundamentação da liminar inicia-se pela recordação da dicotomia conceitual de tributos fiscais e extrafiscais, embora não se detenha nisso.
Plenamente justificada pelos imperativos da concisão e de inteligibilidade dos textos do grande jornal onde publicada, crítica doutrinária à decisão do STF só se valeu de conceitos. Nela se classificam tributos com perfis variados de extrafiscalidade, para concluir que imposto com alto grau dela só seria inválido, se “contrariasse as finalidades extrafiscais almejadas“[6]. E arremata: “se todo tributo arrecada, a elevação de alíquotas é inerente ao seu próprio caráter”.
O Executivo até intuiu o defeito dos raciocínios jurídicos de pura base conceitual. Após ter dito que a elevação do tributo “não poderia ser fulminada tendo como fundamento apenas o conceito de ‘extrafiscalidade’”, a AGU parecia que prosseguiria por caminho promissor: “a expressão ‘extrafiscalidade’ carece de previsão textual na Constituição Federal e na legislação tributária, não servindo como parâmetro objetivo de validade das leis e atos normativos”[7]. Mas ficou nisso; resignou-se com a associação genérica entre o IOF e extrafiscalidade[8].
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A objeção só esboçada merece ser levada até ao final. Raciocínios que extraiam conclusões de direito positivo de constructos da ciência jurídica, como a extrafiscalidade, são congenitamente inválidos. Incidem na antiga falha da “jurisprudência dos conceitos”, que condiciona – senão domina – muitos embates brasileiros, ainda que seus supostos cultores do século XIX nunca a tenham praticado[9].
A essência das objeções a uma jurisprudência dos conceitos está em Jhering: “o que seriam os conceitos […], senão sedimentações de enunciados jurídicos positivos, trazidos […] a uma forma logicamente concentrada, isto é, conceitual?”[10]. Conceitos são retratos ou notações abreviadas de objetos jurídicos[11]. E dado que as “normas são as partículas elementares do direito” e que “o direito se compõe de normas e só de normas”[12], os conceitos descrevem adequadamente as normas do sistema ou não têm serventia. Jamais traduzem “verdades inatacáveis e lógicas, por existirem. Eles mantêm-se de pé ou caem por terra com as normas jurídicas das quais extraídos”[13]. Conceitos da ciência jurídica, como a extrafiscalidade, descrevem as normas positivas, mas nunca as substituem na disciplina de problemas[14]. Afinal de contas, a “ciência cria saber, não direito”[15].
Parte dos raciocínios examinados apresenta justamente o defeito de empregar o conceito de extrafiscalidade como pressuposto, ao invés de conclusão sintética das normas constitucionais pertinentes. A noção de extrafiscalidade usurpa a função da norma como premissa maior na subsunção. Como o IOF tem índole extrafiscal, segue-se que não se presta ao incremento da receita federal.
O defeito torna-se tanto mais claro pela impossibilidade de se isolarem, mesmo no nível conceitual, as funções fiscais e extrafiscais dos tributos, como notado entre os clássicos e os modernos. Para começar, a perspicácia de Baleeiro fala por si: “as ‘finanças neutras’, ou que pretendem deixar a estrutura social como a encontraram, são, na realidade, também políticas. Defendem uma política de caráter conservador, no pressuposto de que o existente é mais justo ou adequado à coletividade em cujo seio se processa”[16]. Depois, a relação entre as funções fiscal e extrafiscal é de preponderância, ao invés de exclusividade. Quando nada, porque os impostos sempre aumentam a receita estatal e, às vezes, ainda produzem interferência acentuada em mercados[17].
De volta ao cânone hermenêutico
É certo que alguns autores e a liminar do STF não deduziram (in)validade das normas impugnadas apenas da extrafiscalidade, abstratamente considerada. Associaram ao conceito a norma de competência do Executivo para a fixação das alíquotas do IOF. Com esse acréscimo, o argumento passa a ter a seguinte estrutura: o art. 153, § 1º, da CR só admite o aumento do tributo por decretos, em virtude de sua natureza extrafiscal.
Deve-se analisar se essa leitura não apenas do art. 153, § 1º, mas de toda a Constituição, passa mesmo pelos critérios ortodoxos do cânone hermenêutico, para se candidatar a parâmetro do controle de constitucionalidade.
Toda interpretação de norma escrita só pode se iniciar por seus elementos linguísticos[18], por se supor que o legislador emprega as palavras no sentido no qual possa ser compreendido de modo geral[19]. Recorde-se, então, a norma decisiva do problema – o art. 153, § 1º, da CR: “é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”. A acribia nesse aspecto não degrada a interpretação ao servilismo literal, nem a desprende em voo livre, no qual a norma seja mero pretexto decisório.
Logo se vê que a tese da exclusividade da destinação extrafiscal do IOF (inc. V) não consta da norma. Ao contrário, ela apenas encerra a principal função normativa das autorizações, pois atribui a um órgão o poder de editar normas; aqui, dá ao Executivo o direito de quantificar as alíquotas do tributo.
Mas era de se esperar elemento textual marcante em contrário, pois o § 1º tem a função normativa autorizadora, ou seja, de dispor sobre a edição de outras normas[20]. Nele se disciplina a produção de outras normas. Como em toda norma de competência, ressalta-se o aspecto positivo, vale dizer, o deferimento de poder para alguém fazer algo. A característica autorizadora da norma não pode ser lida no sentido inverso da função normativa de proibir algo, sem que se decline motivo bastante palpável para tanto. O ônus do argumento forte é a conta de quem deseja ver uma limitação em norma instituidora de prerrogativa em branco.
Não se defende aqui que a restrição só advenha do próprio § 1º. Outras normas podem fazê-lo como os direitos fundamentais e as regras amplas do art. 150 da CR. Mas o fato é que nenhum de tais dispositivos transformou a extrafiscalidade em parâmetro da autorização dada ao Executivo para alterar alíquotas.
A conclusão soa ainda menos aceitável, ao se examinar o art. 153, § 1º, da CR à luz da diferença entre os programas normativos condicionais e os finalísticos. O § 1º foi moldado como programa normativo condicional puro: o Executivo pode majorar o IOF, no intervalo demarcado na lei e atendidas as condições nela fixadas, segundo o velho esquema do dado A, deve ser B: evento do meio ambiente funciona como causa da consequência prescrita pelo direito. “No caso extremo, o condicionamento reduz-se a uma norma de competência”, por cujo meio se atribui a um órgão a decisão do que fazer[21]. É o que ocorre no § 1º discutido.
Já os programas finalísticos operam em razão do efeito ou fim a ser produzido. O efeito deve ser obtido com certos meios, reputados causas adequadas a tanto[22]. Programas finalísticos, porém, só integram o direito, se implantados como subprograma em um programa condicional[23]. Isso ocorre, em geral, pelo condicionamento da escolha de meios, ao se limitar o uso do meio M em busca do fim F, apenas se presente a condição C[24]. Alternativamente o programa finalístico pode vir na forma de consequência jurídica indeterminada de programa condicional mais amplo: dada a condição C, o fim F pode ser realizado pelo meio M[25].
Ocorre que o § 1º não especificou o IOF como meio destinado somente à persecução de objetivos de interferência em mercados, se ocorrida certa condição. Tampouco ali se especificou determinado fato econômico externo como fato autorizador da busca apenas de objetivo extrafiscal pela alteração da alíquota do tributo. Aliás, a norma não circunscreveu a atuação do Executivo a nenhum propósito específico, de sorte que está autorizado a empregá-lo em fins extrafiscais e fiscais.
É certo que se tem deduzido o suposto apoio normativo do fato de o parágrafo primeiro abrir a exceção parcial da legalidade tributária, ao autorizar o Executivo a modificar as alíquotas dos impostos ali mencionados. Esse, aliás, é o único fundamento com alegada pertinência normativa levantado em prol da extrafiscalidade exclusiva.
A tese é comprometida, logo de saída, por extrair a grave limitação constitucional da faculdade restrita do presidente da República de graduar só as alíquotas de três impostos, ainda assim em margens e condições reputadas adequadas pelo Legislativo. Ademais, a desproporção entre a restrição aludida e sua consequência também decorre da prerrogativa do Parlamento de, a todo momento, rebaixar o teto da alíquota, se entender que o Executivo a majorou além do adequado. E tal solução terá efeito imediato, porque reduzirá, ao invés de aumentar, tributo.
Ainda que assim não fosse, o argumento não resolve o problema, pelo motivo apontado: a correção da tese econômica de que o IOF tem efeito extrafiscal ainda não esclarece a razão pela qual o constituinte terá juridicamente limitado seu emprego nessa finalidade.
A exclusividade extrafiscal atribuída ao IOF desenvolveu-se em raciocínio cujas etapas merecem recapitulação. Tudo começa pelo enunciado da ciência econômica que descreve o fenômeno naturalístico de que os tributos, extrafiscais ou não, produzem efeitos econômicos, estimulando ou deprimindo mercados. A ciência econômica também esclarece que impostos enfrentam melhor a dinâmica do mercado financeiro e do comércio internacional, se graduáveis com rapidez.
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Até aí se têm dois imperativos hipotéticos, que descrevem relação de meio e fim no domínio dos fatos econômicos. Mas Kelsen enfatiza: “que um determinado comportamento seja um meio adequado para realizar um fim não significa, em absoluto, que esse comportamento seja devido, isto é, prescrito por uma norma válida da moral ou do direito”[26]. Nem, muito menos, que ele deva ser empregado num só propósito. É preciso que norma do direito positivo o determine.
Sucede que já demonstrou que o § 1º não foi concebido como programa normativo finalístico. Tem, ao contrário, a forma clássica dos programas condicionais, sobretudo por ser norma de competência, em que não se ordena determinada conduta, mas apenas se autoriza a edição de outras normas; no caso, as definidoras de alíquotas.
Daí que a relação econômica de causa e efeito pode até explicar o motivo extrafiscal pelo qual o constituinte autorizou o Executivo a estipular as alíquotas, mas definitivamente não basta para dizer que ele só as pode majorar com tal propósito. A conclusão contrária ensaia o antigo salto naturalístico no interior da interpretação de norma de competência: passa-se da descrição de fenômenos econômicos para a criação de normas jurídicas.
E, pior, a relação de causa e efeito verificada entre o tributo como rápido meio de se obter finalidade econômica extrafiscal também é correta, quanto à meta fiscal. A elevação de alíquota oferece a vantagem da rapidez na obtenção de receitas para o custeio do Estado. Logo, a verificação da congruência entre meios e fins apenas do ponto de vista econômico ainda não diz nada acerca da invalidade desse procedimento num dos dois propósitos possíveis. A falta de restrição expressa, ao contrário, aponta no sentido da licitude do emprego em qualquer deles. Portanto, a autorização passada ao Executivo explica-se, numa interpretação teleológica, tanto na vertente extrafiscal quanto na fiscal.
Uma verdade econômica que esclarece, mas nem esgota as potencialidades do tributo, não é, por si só, limitação jurídica. Menos ainda, pertencente ao mais alto nível normativo – o constitucional.
Ainda do ponto de vista da interpretação teleológica, recorde-se que a limitação do IOF a metas extrafiscais é imunidade parcial dos impostos do art. 153, § 1º, da CR. E aí surge o paradoxo de interditar a tributação de atividades com alta capacidade contributiva, mas permitir a de outras, até menos significativas[27]. O imposto de renda resultante do trabalho e o altamente regressivo IPI até de produtos indispensáveis podem ser elevados para o custeio das despesas estatais. Já a importação mesmo de produtos de luxo e as operações do mercado financeiro, muitas vezes especulativas, passam a ser constitucionalmente poupadas, porque limitadas às finalidades extrafiscais.
Na luta tributária séculos afora, “instintivamente, os grupos que dispunham do poder político escolheram os impostos, que os poupavam, enquanto submetiam a maior gravame os grupos dominados”, destacou Baleeiro[28]. Remediado o problema entre nós pela igualdade geral, pela isonomia tributária pela capacidade contributiva e agora pela justiça tributária, dos arts. 5º, 150, II, e 145, § 3º, da CR, o defeito do puro poder político não deve ser reintroduzido pela interpretação constitucional. A pluralidade de normas constitucionais para determinar, no fundo, algo bem parecido deve servir de alerta ao intérprete constitucional.
A tese da vinculação teleológica do IOF só aos fins extrafiscais também parece reprovada pelo critério sistemático de interpretação. Para manter a comparação apenas no capítulo tributário, salta aos olhos que o padrão da Constituição de 1988 é indicar expressamente as hipóteses de pertinência finalística dos tributos. Eis alguns exemplos:
as taxas para o custeio do exercício do poder de polícia e do uso de certos serviços públicos (art. 145, I, da CR),
a contribuição de melhoria em decorrência de obra pública (art. 145, II),
o imperativo de ajuste de tributos ao perfil específico das cooperativas (art. 146, III, c),
o tratamento favorecido de micro e pequenas empresas (art. 146, III, d)
critérios especiais de tributação para se prevenirem desequilíbrios da concorrência (art. 146-A),
o empréstimo compulsório como categoria para enfrentar calamidades públicas, guerra e a necessidade de investimento estatal de caráter urgente de relevante interesse nacional (art. 148, I e II),
contribuições de intervenção no domínio econômico, no interesse de categorias e para o custeio da previdência de servidores (art. 149, caput e § 1º),
contribuição para o custeio de iluminação pública (art. 149-A),
vedação do uso de tributo com efeito, proposital ou não, de confisco (art. 150, IV),
emprego de tributos como meio para limitar o tráfego de pessoas ou bens (art. 150, V),
progressividade do ITR para desestimular as propriedades improdutivas (art. 153, § 4º, I),
imposto extraordinário para o financiamento de guerra externa (art. 154, II).
A norma do IOF destoa do padrão da Constituição de deixar expressas as hipóteses de restrição teleológica da atividade tributária, a demonstrar que o art. 153, § 1º, não pretendeu adotar similar medida. A diferença de tratamento normativo fica sobretudo clara nas finalidades extrafiscais de prevenção de ilícitos da concorrência e de intervenção na economia, em geral (arts. 146-A e 149). O texto constitucional é isento de dúvidas quando associou os tributos aos propósitos extrafiscais de moldar ou interferir na economia.
E assim persiste a indagação da origem da persistente opinião de que o IOF se confina a metas extrafiscais. O critério histórico de interpretação revela tratar-se de fóssil de ordens anteriores, mas alheio à Constituição de 1988.
A defesa da limitação do IOF a fins extrafiscais origina-se no art. 65 do CTN, que nasceu como a Lei ordinária 5.172/1996[29]. Ainda se lê no art. 65 sobre o “imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro”, o antecessor do IOF: “o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária”.
O art. 19, § 1º, da Carta de 1967 elevou o CTN à categoria de lei complementar, ao passo que o art. 22, § 2º, também daquela Carta endossou e diversificou as finalidades extrafiscais demarcadas pelo art. 65 do CTN para o ancestral do IOF (inc. VI): “é facultado ao Poder Executivo, nas condições e limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo dos impostos a que se referem os nºs I, II e VI, a fim de ajustá-los aos objetivos da política cambial e de comércio exterior, ou de política monetária”[30].
E então a Carta de 1969 introduziu as modificações cruciais na matéria. Revogou o art. 22, § 3º, da Carta de 1967 e, assim, eliminou a vinculação dos impostos do comércio exterior e sobre as operações financeiras a metas extrafiscais. A anterior disciplina única dos três impostos dá lugar a dois regimes distintos. Um regulava ao antigo IOF; o outro disciplinava os impostos de importação e exportação.
O art. 21, I e II, da Carta de 1969 admitiu – apenas em relação aos impostos do comércio exterior – que o “Executivo, nas condições e nos limites estabelecidos em lei”, altere “as alíquotas ou as bases de cálculo”.
A restrição teleológica do antecedente do IOF desapareceu. Em seu lugar, o art. 21, § 4º, autorizava: “a lei poderá destinar a receita dos impostos enumerados nos itens II e VI deste artigo à formação de reservas monetárias ou de capital para financiamento de programa de desenvolvimento econômico”. A finalidade extrafiscal pressuposta para a criação do imposto citado transformou-se em mera faculdade legal de alocar sua receita em dois propósitos. Em termos de funções normativas, a permissão de criação de imposto teleologicamente condicionada tornou-se a autorização de emprego de sua receita em certos fins, de outro modo vedada pelo art. 61, § 2º, da Carta de 1969.
A supressão do limite finalístico do IOF da Carta de 1967 pela Carta de 1969 privou o art. 65 do CTN de validade, por manifesta incompatibilidade com a norma constitucional, que deu ao Executivo âmbito de ação maior. Baleeiro arpoou o centro do problema, ao notar que a vinculação teleológica do antigo IOF “se deduzia do art. 22, § 2º, da Constituição na redação de 1967, hoje suprimida pela Emenda nº 1, de 1969. Assim, o art. 65, do CTN, já não tem sustentáculo constitucional”[31].
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A perda de validade do art. 65 do CTN, por atrito com a Carta de 1969, não tem sido lembrada. Ao contrário, a desconsideração do descompasso entre ambas as normas têm levado à defesa equivocada do fim extrafiscal único do IOF. Parte do defeito no raciocínio parece advir da circunstância de a Constituição de 1988 regular, de novo, o IOF e os impostos sobre o comércio exterior num só dispositivo. Sucede que não se tem visto a diferença gritante entre o art. 153, § 1º, da Constituição de 1988 e o art. 22, § 2º, da Carta de 1967: a norma vigente não reproduz a limitação teleológica antiga, que, aliás, já havia sido revogada pela Carta de 1969.
Talvez ainda ocorra a alguém deduzir a vinculação extrafiscal do IOF com recurso à ideia de que o art. 65 do CTN funcionaria como a lei estabelecedora de uma das “condições” referidas no art. 153, § 1º, da Constituição de 1988. Editada como lei ordinária em 1966, tornada complementar desde 1967, o código regressaria à estatura original na ordem vigente, na parte em que não dispõe sobre temas da atual reserva de lei complementar[32].
A solução deve ser rejeitada, porque a norma tornada inválida – inconstitucional – pelo advento da Carta de 1969 desapareceu do sistema. A casualidade de que a Constituição de 1988 eventualmente autorize, em tese, a edição de norma ordinária com conteúdo similar não repristina regras antigas, incompatíveis com regras superiores que as privaram de validade e, por consequência, de vigor, como o STF bem já o decidiu[33]. Só a votação de outra norma, na ordem de 1988, produziria tal efeito.
O emprego do IOF para a finalidade fiscal – ao invés de extrafiscal – não gera, por si só, sua inconstitucionalidade.
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[1] ADCs 96 e 97 e ADIs 7.827 e 7.839.
[2] Não há como aqui se debater a conciliação, que já se vai normalizando e contando com o apoio da parte da doutrina adepta de um “positivismo de STF”; para essa cópia retardada da disfunção da teoria, denunciada desde 1962 na Alemanha, cf., Smend, Rudolf. Das Bundesverfassungsgericht. Festvortrag zur Feier des zehnjährigen Bestehens des Bundesverfassungsgerichts am 26. Januar 1962. In: _____. Staatsrechtliche Abhandlungen und andere Aufsätze. Berlin: Duncker & Humblot, 1994, p. 581-593 (582); Schlink, Bernhard. Schlink, Bernhard. Die Entthronung der Staatsrechtswissenschaft duch die Verfassungsgerichtsbarkeit. In: Der Staat, Berlin, vol. 28, 1989, p. 161-172, passim; e Jestaedt, Matthias. Verfassungsgerichtspositivismus: Die Ohnmacht des Verfassungsgesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat. In: Depenheuer, Otto; Heintzen, Markus; Jestaedt, Matthias; Axer, Peter [Hrsg.]. Nomos und Ethos. Berlin: Duncker & Humblot, 2002, p. 183-228 (187-188).
[3] Motivo idêntico também impede a invocação dos precedentes do STF recordados na ADI 5.277, pois relativos a tributos vinculados – contribuições ou taxas: RE 343.446, RE 704.292, ADI 4.697 e RE 838.284.
[4] Cf. abaixo, para a adequação finalística da prerrogativa executiva também à finalidade fiscal.
[5] Petição inicial da ADI 7.839.
[6] Moreira, André Mendes. IOF: entre o Legislativo e o Executivo, a Constituição. Folha de São Paulo. São Paulo, 1º.7.2025, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/que-imposto-e-esse/2025/07/iof-entre-o-legislativo-e-o-executivo-a-constituicao.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa, acesso em 10.7.2025.
[7] Petição inicial da ADC 96, respectivamente §§ 48 e 49.
[8] Petição inicial da ADC 96, § 35.
[9] A sátira de Jhering. Rudolf von. Wieder auf Erden. In: _____. Scherz und Ernst in der Jurisprudenz. Nachdruck der 13. Aufl. Leipzig, 1924, Darmstadt: WBG, 1992, p. 335-383 (337), recebida por seu valor de face por clássicos do século XX, como Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 430-524 e especialmente p. 491 e segs.; e Larenz, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 5. Aufl. Berlin; Springer, 1983, p. 19-35, está refutada pelos estudos contemporâneos e específicos de Rückert, Joachim, Einführung. In: Rückert, Joachim; Seinecke, Ralf. Methodik des Zivilrechts – von Savigny bis Teubner. 2. Aufl. Nomos: Baden Baden, 2012. p. 23-37; e Die Schlachtrufe im Methodenkampf, idem, p. 541-608; Haverkamp, Hans-Peter. Methode und Rechtslehre bei Georg Friedrich Puchta (1798-1846), ibidem, p. 96-120; e por obras gerais, como as de Röhl, Klaus F.; Röhl, Hans Christian. Allgemeine Rechtslehre. 3. Aufl. Köln: Carl Heymanns, 2008, p. 64-75; e Rüthers, Bernd; Fischer, Christian. Rechtstheorie. 5. Aufl. München: Beck, 2010, p. 305 e 306, nº 460 e 462.
[10] Jhering, Erden, p. 342: “Was waren den alle die Begriffe, bei denen ich mich vom Bann des Positiven befreit glaubte, anders als Ablagerungen positiver Rechtssätze, von denen die Römern in eine logisch konzentrierte, d. h., begriffliche Form gebracht?”.
[11] Rückert, Schlachttruf, p. 548, nº 1378.
[12] Röhl e Röhl, Rechtslehre (nota 9), p. 189; antes de todos evidentemente Kelsen, Hans. Reine Rechtslehre. Studienausg. der 2. Aufl. Tübingen: Mohr, 2017, p. 47-48; e agora Dreier, Ralf. Rechtswissenschaft als Wissenschaft – Zehn Thesen. In: _____. Rechtswissenschaft als Beruf. Tübingen: Mohr, 2018, 1-65 (3).
[13] Jhering, Erden, p. 344: “Also eine Täuschung ist es, als ob die Begriffe weil sie einmal da sind, die Geltung unumstößlicher logischer Wahrheiten beanspruchen könnten. Sie stehen und fallen mit den Rechtssätzen, denen sie entnommen sind”.
[14] Larenz, Methodenlehre, nota 9, p. 27.
[15] Jestaedt, Matthias. Die Verfassung hinter der Verfassung. Padernborn: Ferdinand Schöningh, 2009, p. 22: “Der Wissenschaftler – und hier ist die deutsche Begriffsprägung äußerst exakt – produziert nicht Recht, sondern Wissen über Recht: Wissenschaft schafft Wissen, nicht Recht”; cf. Kelsen, Reine Rechtslehre (nota 12), p. 144 e segs., para a distinção entre os juízos de prescritivos da ordem jurídica e os descritivos da ciência jurídica.
[16] Baleeiro Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 176; no mesmo sentido, p. 182.
[17] Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2. ed. Saraiva: 1972, p. 536, destaca quanto aos tributos modernos: “na construção jurídica de todos e de cada tributo, nunca mais estará ausente o finalismo extrafiscal, nem será esquecido fiscal. Ambos coexistirão sempre agora de um modo consciente e desejado – na construção jurídica de cada tributo; apenas haverá maior ou menor prevalência neste ou naquele sentido, a fim de melhor estabelecer o equilíbrio econômico-social do orçamento cíclico”; Moreira, IOF (nota 6) e Torres, Heleno Taveira. Direito constitucional financeiro, p. 203, apud a petição inicial da ADC 98, § 50: “a ‘extrafiscalidade, na forma como concebida no passado, como algo diverso da ‘fiscalidade’, já não tem cabimento teórico ou finalidade prática. […]. O destino da arrecadação será sempre aquele tipicamente ‘fiscal’, ainda que cumpra outras funções legítimas de intervencionismo na economia ou na concretização dos fins constitucionais do Estado, para o atendimento da função distributiva da Constituição“; no direito comparado, Tipke, Klaus; Lange, Joachim. Direito tributário. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, v. 1, p. 177, nº 22, notam: “os impostos de finalidade social […] têm em geral ao lado do fim social – secundariamente – também um fim fiscal”.
[18] Para os clássicos, cf., por todos, Schröder, Jan. Recht als Wissenschaft. 3. Aufl. München: Beck, 2020, Bd. 1., p. 60, 134, 144 e 220, p. ex., que acompanha o aspecto linguístico da interpretação como critério hermenêutico ininterrupto desde, ao menos, Bártolo (séc. XIV), passando pela sistematização de Savigny, de que também se vive hoje; para os modernos, cf. Larenz, Methodenlehre (nota 9), p. 307; Klatt. Matthias. Theorie der Wortlautgrenze. 1. Aufl. Baden-Baden: Nomos, 2004, passim; mas cf. Herbert, Manfred. Rechtstheorie als Sprachkritik. 1. Aufl. Baden-Baden: Nomos, 1995, p. 239 e segs., para as dificuldades do sentido literal, em face da filosofia de Wittgenstein.
[19] Möllers, Thomas M. J. Juristische Methodenlehre. 5. Aufl. 2023, p. 138, § 4, nº 40; e Morlok, Martin. Die vier Auslegungsmethoden – was sonst?. In: Gabriel, Gottfried; Gröschner, Rolf. Subsumtion. Tübingen: Mohr Siebeck, 2012, p. 179-214 (124),
[20] Kelsen, Hans. Reine Rechtslehre. 2. Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2017, p. 44-45 e 114, p. ex.
[21] Luhmann, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. 6. Aufl. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2013, p. 203: “Im Extremfall reduziert sich die Konditionierung also auf eine Kompetenznorm”.
[22] Luhmann. Niklas. Recht und Automation in der öffentlichen Verwaltung. 2. Aufl. Berlin: Duncker & Humblot, 1997, p. 36.
[23] Luhmann, Automation (nota 22), p. 39.
[24] Luhmann, Automation (nota 22), p. 39.
[25] Luhmann, Automation (nota 22), p. 39.
[26] Kelsen, Hans. Allgemeine Theorie der Normen. 1. Aufl. Wien: Manz, 1979, p. 8: “Daß ein bestimmtes Verhalten ein Mittel ist, geeignet, einen bestimmten Zweck zu verwirklichen, bedeutet keineswegs, daß dieses Verhalten gesollt ist, das heißt, durch eine geltende Norm der Moral oder des Rechts vorgeschrieben ist”.
[27] Moreira, IOF (nota 6).
[28] Introdução (nota 16), p. 178.
[29] A solução do problema dispensa análise de leis anteriores ao CTN.
[30] O CTN legitima-se como lei complementar nas Constituições posteriores, por força dos arts. 19 e 30 do AI 2/1965 e do art. 7º do Ato Complementar 36/1966, que lhe deram nova ordenação de vigência e a retiraram da apreciação judicial.
[31] Baleeiro, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 279.
[32] Cf., por todos, a ADC 1, rel. Min. Moreira Alves, para a demonstração de que leis complementares votadas em temas não (mais) reservados a tal espécie normativa seguem valendo como ordinárias, se não perderem sua validade ou eficácia, em virtude respectivamente de normas superior ou posterior.
[33] REs 346.084, 390.840 e 439.796 e 474.267 do STF