A quem interessa abolir o julgamento com perspectiva de gênero?

No último dia 25 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados considerou constitucional o PDL 89/2023, de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), que busca abolir integralmente o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero estabelecido pela Resolução 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O referido protocolo tem por objetivo “estabelecer diretrizes mínimas para a adoção de perspectiva de gênero nos julgamentos do Poder Judiciário, além de prever a obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas em direitos humanos, gênero, raça e etnia”.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

O parecer da relatora na CCJ, deputada Bia Kicis (PL-DF), corroborando com a justificativa do projeto, baseou-se em argumentos de ordem técnica, apontando suposta extrapolação de competência do CNJ. Segundo o relatório, temas relativos à formação e aperfeiçoamento de magistrados estão reservados ao Estatuto da Magistratura, cuja iniciativa legislativa pertence ao Supremo Tribunal Federal (STF) e depende de lei complementar, nos termos do artigo 93, IV, da Constituição Federal.

Logo, na visão da CCJ, o CNJ não poderia criar, por resolução, a obrigatoriedade de capacitação ou parâmetros de julgamento inovadores sem respaldo legislativo formal.

É importante apontar a possibilidade lógica do argumento técnico. De fato, a Constituição estabelece limites à atuação normativa do CNJ, órgão de natureza administrativa, sem função legislativa. Este debate sobre reserva de lei não é trivial e faz parte do controle de competências previsto pelo próprio desenho constitucional.

Contudo, parar a análise apenas nesse ponto pode nos levar a um perigoso ensaio sobre a cegueira: os impactos reais e simbólicos de abolir um protocolo de julgamento que busca proteger mulheres e grupos vulneráveis de estereótipos e desigualdades historicamente consolidadas – inclusive no próprio Poder Judiciário.

O Direito, afinal, sempre foi palco de disputas sobre seus próprios sentidos. As mesmas normas constitucionais que hoje fundamentam a derrubada do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero já foram interpretadas para admitir resoluções do CNJ que também inovaram a ordem jurídica, como nos casos do combate ao nepotismo ou do casamento homoafetivo[1].

Em outras palavras, o discurso jurídico tem plasticidade suficiente para acomodar interesses diversos: ora servindo à ampliação de direitos, ora funcionando como justificativa para restringi-los. E é justamente neste manejo retórico, muitas vezes elegante e técnico, que se revelam disputas de fundo estrutural.

Simone de Beauvoir foi assertiva ao anunciar que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”[2]. É neste contexto que a perspectiva de gênero no Judiciário, ainda que prevista apenas como orientação, provoca reações desproporcionais e ameaças de abolição total.

Não se discute, por exemplo, eventual aperfeiçoamento técnico ou ajustes de constitucionalidade que poderiam manter o conteúdo protetivo do protocolo dentro dos limites legais. O que se propõe é simplesmente anular integralmente a diretriz, sinalizando que a vulnerabilidade histórica das mulheres não merece sequer reconhecimento simbólico na prática judicial.

O risco é real. Ainda que a aplicação do protocolo, na realidade, seja limitada – com a recusa de muitos juízes em se manifestarem expressamente sobre ele – sua existência carrega peso pedagógico e cultural: uma mensagem institucional de que o sistema de justiça não pode se manter neutro diante das desigualdades estruturais que atravessam a vida das mulheres. Derrubar esse direito equivale a afirmar, em alto e bom som, que tais desigualdades podem continuar invisíveis, sem constrangimento algum para o Poder Judiciário e para toda a sociedade.

Não é coincidência, tampouco, que a autoria e a relatoria do projeto estejam nas mãos de parlamentares mulheres. Esse dado exige cuidado na leitura: não se trata de apontar “traições” ou personalizar culpas, mas de enxergar como a própria estrutura social pode instrumentalizar mulheres para legitimar discursos de retrocesso. É parte de um jogo sofisticado – e cruel – em que a presença de mulheres em espaços de poder acaba sendo utilizada para maquiar e perfumar a reprodução de desigualdades.

Pierre Bourdieu[3] nos lembra que a violência simbólica opera justamente onde menos a enxergamos: de forma indireta, invisível e até inconsciente, quando os dominados internalizam a dominação como legítima, sem sequer reconhecê-la como violência. Esse poder dispensa coerção física, pois age pela linguagem, pela cultura e pelas práticas sociais, moldando as expectativas de papéis e a visão que as pessoas têm de si mesmas. O habitus, conceito central em Bourdieu, faz com que estruturas de desigualdade sejam incorporadas como naturais, tornando praticamente inquestionável a hierarquia que as sustenta.

Nesse sentido, o fato de mulheres figurarem como autora do projeto e relatora do parecer na CCJ não enfraquece, mas ao contrário, reforça a eficácia da violência simbólica: quando mulheres ocupam papéis institucionais para legitimar retrocessos incidentes sobre suas próprias conquistas enquanto classe sexual, cumprem, ainda que involuntariamente, a função de naturalizar a exclusão feminina como se fosse apenas uma exigência técnica ou constitucional.

É exatamente aí que a violência simbólica se mostra mais dilacerante, pois se mascara de neutralidade e passa a ser reproduzida sem resistência, perpetuando o apagamento histórico das desigualdades estruturais no acesso à Justiça.

Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!

Advogadas, advogados e demais juristas e acadêmicos que se debruçam sobre o direito das mulheres precisam estar atentos a esse fenômeno. Não basta assumir que a presença de mulheres, por si só, garantirá a defesa de direitos. É preciso compreender os movimentos simbólicos, a manipulação da linguagem jurídica e as estratégias de poder político que sustentam esses retrocessos.

A extinção do protocolo do CNJ pode abalar a própria ideia de que o Judiciário deve ser sensível às vulnerabilidades de gênero. E, em um país em que as estatísticas de violência contra mulheres seguem alarmantes, essa recusa significa muito.

Mais do que nunca, a advocacia pelos direitos das mulheres precisa responder a esse desafio sem ingenuidade, e sem perder a firmeza. O Direito não se faz apenas de tecnicalidade, ele se faz de disputas de poder e jogo de palavras. E, hoje, essas disputas passam pela escolha de quem terá direito a ser visto, ouvido e reconhecido como sujeito de direitos no sistema de justiça.

[1] O STF já reconheceu a possibilidade de o CNJ editar atos normativos primários, nos termos da ADC 12, relatoria do ministro Ayres Britto, e do MS 32.077, relatoria do ministro Luiz Fux, que analisaram, respectivamente, as Resoluções CNJ 7/2005 (proibição do nepotismo) e 175/2013 (vedação à recusa de casamento homoafetivo).

[2] Ver Simone de Beauvoir – O segundo sexo.

[3] Ver Pierre Bourdieu – A dominação masculina

Generated by Feedzy