A crise do IOF que tomou conta de Brasília nos últimos meses tornou-se um retrato da tensão constante entre Executivo e Legislativo no Brasil, onde a Constituição de 1988 distribui poderes, mas não elimina disputas. O gatilho foi a edição, entre maio e junho, dos Decretos 12.466, 12.467 e 12.499/2025, assinados pelo presidente Lula, que elevaram substancialmente as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras.
O novo patamar tributário — quadruplicando a carga sobre operações de crédito para pessoas jurídicas e multiplicando por dez a incidência sobre remessas ao exterior — provocou reação imediata do Congresso, que aprovou em tempo recorde o Decreto Legislativo 176/2025 para sustar os atos presidenciais. Em vez de diálogo, os Poderes produziram normas contraditórias, empurrando a decisão para o Supremo Tribunal Federal (STF).
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O IOF tem papel singular no sistema tributário brasileiro: é um imposto extrafiscal, criado para servir como instrumento de calibragem da política monetária e cambial. O art. 153, §1º, da Constituição permite ao presidente alterar suas alíquotas por decreto, desde que respeitados limites legais. Essa prerrogativa é uma exceção ao princípio da legalidade estrita, que normalmente exige lei formal para aumentar tributos.
Nos bastidores do Ministério da Fazenda, a expectativa era gerar espaço fiscal de R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 2026. A divulgação desses números alimentou críticas: se o objetivo é arrecadação, perde-se a justificativa extrafiscal que sustenta o regime jurídico facilitado.
O Congresso, ao reagir, invocou o art. 49, V, da Constituição, que lhe dá competência para sustar “atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar”. Parlamentares alegaram que as majorações atingiram setores inteiros sem estudo de impacto regulatório, caracterizando excesso.
O problema, como lembram juristas, é que os decretos sobre alíquotas do IOF não derivam de lei a ser regulamentada, mas diretamente da Constituição. São, portanto, decretos autônomos. Ao tentar sustá-los, o Legislativo extrapola sua competência, transformando o mecanismo de freio em verdadeira revogação de ato presidencial, algo que só o Judiciário pode fazer por meio de controle de constitucionalidade.
A disputa foi parar no STF em três ações de controle concentrado: a ADI 7.827, do PL, para derrubar os decretos presidenciais; a ADI 7.839, do PSOL, contra o Decreto Legislativo 176; e a ADC 96, do próprio presidente, para declarar a constitucionalidade do Decreto 12.499.
O ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos, suspendeu todos os atos — tanto do Executivo quanto do Legislativo — até decisão final. A cautelar se baseou em dois pontos: primeiro, apontou “séria e fundada dúvida” sobre desvio de finalidade do governo, já que o salto de arrecadação previsto — 60% acima da receita total de IOF em 2024 — sugere caráter puramente fiscal; segundo, considerou que o decreto legislativo violou a separação de Poderes, pois o art. 49, V, não autoriza o Congresso a sustar decretos autônomos.
O ponto jurídico central é se um decreto legislativo pode ser usado para barrar um decreto presidencial editado com fundamento direto na Constituição. A doutrina majoritária entende que não. Em precedente importante, o STF já afirmou, na ADI 748, que a sustação prevista no art. 49, V, é mecanismo de autocontenção da atividade administrativa, restrito a casos de excesso de regulamentação ou abuso de delegação legislativa.
Quando o Executivo age em competência própria — como no caso do IOF — o controle deve ocorrer via ação direta de inconstitucionalidade. Moraes citou ainda precedentes como a ADI 5.740 e a ADI 1.553, reforçando que o Parlamento não pode substituir o Judiciário no exame de constitucionalidade material.
Esse debate se conecta à natureza extrafiscal do IOF. O Supremo tem reiterado, desde o RE 570.680, que a mitigação da legalidade e da anterioridade, autorizada pelo art. 153, §1º, exige do governo prova concreta de que a medida busca regular mercados, não apenas aumentar arrecadação.
Nas palavras de Moraes, “o IOF escapa das barreiras da anterioridade exatamente porque serve de instrumento de equalização do mercado financeiro”. Se a majoração atende só à meta fiscal, o decreto perde sua base constitucional. A decisão cautelar não cravou o desvio, mas considerou plausível a tese e determinou a suspensão para evitar “efeitos perversos” sobre contribuintes e sobre a harmonia entre os Poderes.
No campo político, a crise do IOF expôs fissuras na base governista e deu munição à oposição, que acusa o Planalto de aumentar impostos sem debate público. No governo, há temor de que a liminar comprometa o ajuste fiscal e reduza previsibilidade para investidores. Economistas alertam que a indefinição sobre alíquotas, mesmo que temporária, aumenta a volatilidade do câmbio e pressiona juros futuros, anulando parte do efeito regulatório pretendido.
A audiência de conciliação marcada para esta terça-feira (15/7), reunindo Presidência da República, Senado, Câmara, AGU e PGR, busca reaproximar os Poderes antes do julgamento definitivo. Na prática, o espaço para acordo é pequeno: ou o governo convence o STF de que sua motivação foi regulatória, ou terá de editar novo decreto em patamar mais brando.
Por outro lado, o Congresso dificilmente abrirá mão de reagir a aumentos considerados abusivos. Se não houver composição, caberá ao STF fixar balizas definitivas sobre o alcance do art. 49, V e os limites do art. 153, §1º, com impacto para toda a política econômica.
Juristas acompanham o caso de perto porque, além do IOF, outros tributos — como a Cide sobre combustíveis ou o Imposto de Exportação sobre commodities — dependem do mesmo tipo de decreto presidencial.
Uma decisão do STF em favor do Executivo fortaleceria a Fazenda; uma decisão que limite a extrafiscalidade pode obrigar futuras majorações a passar pelo Congresso, resgatando o princípio da legalidade tributária. Em qualquer cenário, o precedente influenciará a reforma tributária infraconstitucional em discussão na Câmara, especialmente no capítulo das contribuições regulatórias.
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Enquanto isso, empresas de crédito, bancos e operadores de câmbio operam sem clareza. Sem certeza sobre as alíquotas, parte dos contratos já assinados inclui cláusulas de ajuste retroativo, transferindo ao tomador o risco da decisão judicial.
Entidades de classe pressionam por solução rápida, alegando que o impasse mina a segurança jurídica e inibe investimentos num momento de crescimento baixo. A Receita Federal suspendeu a emissão de guias com as novas alíquotas, mas não descarta cobrar diferenças se o STF validar os decretos, o que pode criar passivo bilionário.
No fundo, o embate do IOF revela a dificuldade de conciliar flexibilidade de política econômica com o arcabouço democrático. A Constituição delegou ao Executivo a tarefa de agir com rapidez em momentos de turbulência, mas condicionou essa liberdade a finalidades específicas. Quando a fronteira entre arrecadação e regulação se torna difusa, Legislativo e Judiciário reivindicam voz.
Se a crise atual resultar em parâmetros mais claros sobre desvio de finalidade e sobre a amplitude do decreto legislativo, terá produzido avanço institucional. Caso contrário, será apenas mais um capítulo de um conflito recorrente, em que cada Poder estica suas prerrogativas até que o STF, mais uma vez, seja chamado a dar a última palavra.