O CPNU e sua incrível fábrica de inovações

No mundo privado, sob a lógica capitalista de funcionamento dos mercados, inovações são uma das formas por meio das quais agentes econômicos buscam incrementar – mediante ganhos de eficiência e competitividade – suas participações relativas na renda global.

O veículo por meio do qual esse processo se realiza são as interações concorrenciais, geralmente imperfeitas, entre empresas e a sua forma de manifestação são os lucros monetários maiores que delas se obtêm enquanto as inovações não se difundem nem se naturalizam completamente pelo sistema.

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Já no mundo da esfera pública, sobretudo em âmbito estatal ou governamental, inovações são processos administrativos motivados não pelo lucro monetário, mas pela necessidade de enfrentamento ou resolução de problemas complexos de natureza institucional com abrangência e implicações coletivas.

O fundamento que justifica e explica as inovações públicas é de índole sociopolítica e não econômica, e os seus objetivos são a melhoria de estrutura e funcionamento das organizações, bem como a ampliação e consolidação de direitos e cidadania para a população, ao invés da apropriação privada de resultados econômicos.

Esta é a razão pela qual podemos considerar o Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) uma pequena – mas potente – fábrica de inovações públicas incrementais no Brasil. Ele representa um marco no modelo de realização de concursos públicos do país, ao estabelecer uma estrutura de governança colaborativa entre diversos órgãos.

Essa governança assegura a observância das diretrizes e procedimentos do certame, além de fortalecer a transparência e a participação cidadã por meio da ampla divulgação das etapas e das melhorias introduzidas no concurso por parte do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.

A primeira edição do CPNU trouxe inovações incrementais às normas que regem os concursos públicos, sobretudo no que diz respeito à democratização do acesso. Ratificada pela segunda edição já em curso, essa experiência inédita amplia a participação dos candidatos desde a etapa de inscrição, ao prever isenção da taxa não apenas para os candidatos inscritos no CadÚnico e doadores de medula óssea, mas também para aqueles que sejam ou tenham sido bolsistas do ProUni ou beneficiários do Fies.

Na etapa de aplicação das provas, o CPNU segue ampliando as oportunidades ao disponibilizar locais de realização em mais de 200 cidades (228 na primeira edição e algo como a mesma quantidade na segunda), o que contribui para a redução dos custos de deslocamento dos candidatos. Além disso, permite que uma mesma prova seja utilizada para concorrer a diversos cargos e órgãos distintos, conforme ordem de preferência indicada pelo próprio candidato.

Esse novo arranjo institucional viabilizou mudanças normativas relevantes, como a Portaria MGI 4.567/25, que regulamenta o aproveitamento da lista de espera dos candidatos aprovados no CPNU fora do número de vagas imediatas. Esses candidatos poderão ser convocados para contratação temporária de pessoal pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional aderentes ao concurso, sem prejuízo da convocação para preenchimento das vagas dos cargos efetivos para os quais foram aprovados.

Outra medida inovadora diz respeito à possibilidade de aplicação extraordinária de provas em situações excepcionais e imprevisíveis. Na primeira edição, esse cenário foi regulamentado, de forma inédita, pelo Decreto 12.090/24, que prevê a realização das provas em data distinta para os candidatos impedidos de comparecer na data oficial, garantindo a participação em vagas suplementares, com base nos princípios da legalidade e da isonomia.

A norma foi formulada no contexto de adiamento das provas da primeira edição do concurso, em razão da calamidade pública que ocorreu no Rio Grande do Sul em 2024.

No que se refere à aplicação da reserva de vagas para pessoas negras (pretas e pardas), dados apresentados no Seminário Internacional de Concursos Públicos (2025)[1] indicam que, nos concursos anteriores do Poder Executivo Federal, a proporção de aprovados cotistas negros havia sido de 11,5% em 2022, 10,1% em 2023 e 5,3% em 2024.[2]

Ainda conforme os dados do seminário, na primeira edição do CPNU, considerando a distribuição por blocos temáticos, a menor proporção de aprovados cotistas negros ocorreu no bloco 4 (Trabalho e Saúde do Servidor), com 19%, enquanto a maior foi registrada no bloco 6 (Setores Econômicos e Regulação), com 20,8%. Esses resultados refletem a aplicação da Lei de Cotas vigente no certame, que reservava 20% de vagas para candidatos negros (pretos e pardos).

Entre as possíveis causas, destaca-se o Decreto 11.722/2023, que instituiu o CPNU e previu a não aplicação da chamada “cláusula de barreira”, nos moldes do Decreto 9.739/2019, que limitava, em geral, a até três vezes o número de candidatos habilitados a avançar para as etapas seguintes, mesmo que tivessem alcançado a nota mínima exigida na fase anterior.

Por outro lado, os editais da primeira e da segunda edição do CPNU dispuseram a classificação para a fase discursiva de até nove vezes o número de vagas disponíveis por tipo de concorrência. Apesar de manter a cláusula de barreira, ampliou significativamente o número de candidatos aptos a essa etapa. Essa ampliação mitigou o risco de que a exclusão de candidatos autodeclarados negros, cuja autodeclaração não fosse confirmada, comprometesse o preenchimento das vagas reservadas.

A segunda edição do CPNU, com edital já publicado, aplicará pela primeira vez a ampliação da reserva de vagas às pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas em concursos públicos, conforme Decreto 12.536/25. Ao todo, são reservadas 30% das vagas, sendo 25% para pessoas negras, 3% para indígenas e 2% para quilombolas.

O edital do certame contempla ainda outra inovação que é a promoção da equidade de gênero entre os candidatos. As avaliações da primeira edição constataram que as mulheres representaram 56,2% dos inscritos, mas somente 39,3% tiveram as discursivas corrigidas. Apesar disso, entre as mulheres que chegaram à segunda fase, o desempenho foi superior em relação aos homens, ou seja, as candidatas tiveram melhor taxa de aproveitamento na correção das discursivas.

Assim, o edital do CPNU 2 prevê que, caso seja identificada uma desproporção significativa em prejuízo das mulheres, com percentual inferior a 50% das classificações para a etapa discursiva, poderão ser adotadas notas mínimas específicas para mulheres, distintas daquelas aplicadas aos homens. Essa medida não exclui homens nem altera o conteúdo das provas ou os critérios de mérito, mas busca corrigir assimetrias estruturais e garantir maior representatividade feminina nas etapas seguintes do certame.

A iniciativa está amparada no Decreto 11.785/23, que institui o Programa Federal de Ações Afirmativas, voltado à promoção de direitos e à equiparação de oportunidades por meio de ações afirmativas destinadas às populações negra, quilombola e indígena, às pessoas com deficiência e às mulheres, consideradas as suas especificidades e diversidades.

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Dessa forma, o Concurso Público Nacional Unificado consolida-se como uma política pública voltada à modernização dos processos seletivos e à ampliação do acesso ao serviço público federal.  A transformação realizada pelas inovações incrementais responde a desafios históricos, principalmente relacionados à transparência e à equidade, além de promover a racionalidade nos mecanismos de seleção, em consonância com os princípios constitucionais e com os compromissos do Estado brasileiro com a justiça social e a diversidade.

Não obstante os avanços já consolidados, é claro que ainda há um conjunto amplo de questões e desafios a enfrentar, alguns dos mais importantes já antecipados no livro A saga do CPNU: inovação em serviços públicos e transformação do Estado para a cidadania,[3] tais como:

i) a necessidade de se produzir editais os mais precisos e corretos possíveis, de modo a evitarem-se as judicializações que sempre acometem os certames públicos no Brasil;
ii) a necessidade de maior homogeneização entre as provas dos diversos blocos temáticos, em termos do grau de abrangência, complexidade e dificuldade das respectivas questões;
iii) a necessidade de maior similitude entre as estruturas remuneratórias e perfis das carreiras e cargos em disputa dentro de cada bloco temático, de modo a se garantir que todos eles terão quantidade e qualidade suficientes de candidatos aptos, vocacionados e disponíveis ao preenchimento de todas as vagas;
iv) os desafios logísticos e tecnológicos associados à realização de certames unificados, simultâneos e de abrangência nacional, por conta das questões de segurança, transporte e integridade física e jurídica de candidatos, colaboradores, materiais e regras do certame, ao longo de todo o processo de realização do mesmo, já que o mapa de riscos do CPNU é muito complexo, concentrado e visível aos atores interessados ou diretamente envolvidos no processo;
v) da mesma maneira, os desafios tecnológicos e inclusive estatísticos de organização e implementação, com segurança e transparência, dos critérios de classificação e aprovação dos candidatos, bem como de aproveitamento do cadastro reserva, tais como previstos nos editais.

Isto posto, e cientes de que o enfrentamento dessas questões faz parte do processo de aprendizado institucional em curso, tem-se que a sua resolução deverá reforçar os aspectos positivos já identificados e amplamente reconhecidos do CPNU, notadamente:

i) ampliação e democratização do acesso da população em geral às vagas públicas;
ii) possibilidade de escolha concorrencial amparada não apenas nas características gerais de perfil e remuneração dos cargos disponíveis, mas também levando-se em conta as formações acadêmicas, as vocações pessoais e os interesses profissionais de cada um;
iii) integração e racionalização de recursos e processos administrativos e logísticos antes dispersos, permitindo maior economia de escala e escopo, eficiência, eficácia e efetividade da ação pública;
iv) melhor gestão estratégica com vistas a garantir o máximo de segurança, transparência e integridade total do certame, da publicação do edital à homologação dos resultados finais;
v) maior clareza acerca das necessidades de pessoal da administração pública e das tendências a futuro das políticas e da ação do Estado, conectando concursos públicos ao projeto de desenvolvimento nacional no Brasil.

A futuro, idealmente, para uma efetiva institucionalização do CPNU, alguns passos adicionais poderiam ser buscados, tais como:

i) desvincular a realização do certame da existência de vagas e/ou de orçamento prévio;

ii) realizar o CPNU de modo regular, sempre no segundo ano de cada mandato presidencial, com vigência de dois anos, organizado por blocos temáticos genéricos sem vinculação prévia a vagas, cargos ou carreiras;

iii) esse cadastro geral seria a primeira fase eliminatória objetiva do CPNU, e serviria de referência às seleções públicas setoriais específicas posteriores;

iv) uma vez constituídos os cadastros por bloco temático, os órgãos da APF demandariam seus concursos ou fases adicionais específicas que apenas poderiam ser realizados tendo por universo de participantes os previamente classificados no CPNU;

v) essas fases e etapas setoriais específicas precisariam ser obrigatórias e ficariam a cargo dos respectivos órgãos;

vi) o tempo estimado de contratação poderia ser reduzido a menos de seis meses frente o cenário atual;

vii) a estratégia de transversalização de carreiras pelo MGI implicaria na necessidade de centralização progressiva e supervisão de grande quantidade de vagas e carreiras públicas.

Ainda que essas pretensões exijam um tempo de maturação e operacionalização longo, em qualquer dos cenários, a própria execução da estratégia deflagrará trilhas de aprendizado institucional, cujos frutos retroalimentarão a melhoria da experiência e servirão de marco fundamental para a consolidação, em futuro próximo, de um modelo inovador e eficaz de seleção pública, que tem em seu centro o retorno do planejamento e da gestão estratégica de pessoas no âmbito federal brasileiro.

[1] MELLO, Pedro; BIANCHI, Lorenzo; GALVÃO, César. CPNU – Análise de abstenção, desempenho e cotas. Apresentação por Pedro Masson. Brasília: ENAP, 2025.

[2] Excluindo os certames para os cargos de professor do magistério superior

[3] CARDOSO JR., J. C. e ALVES, R. R. (orgs). A Saga do CPNU: inovação em serviços públicos e transformação do Estado para a cidadania. Brasília: MGI, 2024.

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