Apresentado este ano, o PL 3/2025 constitui marco de extrema relevância na tentativa de consolidar um regime jurídico para processos estruturais. Fruto do trabalho de uma Comissão de Juristas, o projeto visa a disciplinar as ações civis públicas destinadas a lidar com problemas estruturais.
Como o projeto está sujeito ao trâmite legislativo no Senado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considerou necessária a edição de ato normativo voltado ao Judiciário, disciplinando o tratamento e a implementação de medidas em processos estruturais. Com esse objetivo, foi editada a Recomendação pelo CNJ, que estabelece as diretrizes para identificação e condução desses processos.
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A Recomendação que disciplina os processos estruturais originou-se de proposta dos Professores Mateus Casimiro e Trícia Navarro, encampada pelo relator, o Conselheiro Pablo Barreto, o qual também exerce a função de coordenador do Fórum Nacional de Ações Coletivas.
Além de seu propósito declarado, a Recomendação atribui aos tribunais o dever de gestão processual ou de administração judiciária (court management), incumbindo-lhes adaptar e flexibilizar soluções para os problemas estruturais conforme as especificidades de cada caso. Na magistratura, esse papel é atribuído ao CNJ, responsável por controlar a atuação administrativa e por garantir a observância do princípio da eficiência no Judiciário.
Nos termos do voto do conselheiro, ao tratar da elaboração da Recomendação sobre processo estrutural, “a Constituição Federal (art. 5º, LXXVIII) e o Código e de Processo Civil (art. 37, caput da CR; art.8º) impõem aos magistrados e às magistradas a observância do princípio da eficiência, tanto na atividade jurisdicional quanto na gestão administrativa da justiça”. [1] [2]
Embora não possua caráter vinculante e não se aplique diretamente ao STF, a forma como a corte conduz processos estruturais inspirou a elaboração da Recomendação. Segundo Mateus Casimiro, o ato normativo é relevante por propor diretrizes para a criação de núcleos interdisciplinares nos tribunais, técnicas de monitoramento e implementação de planos, além de integrar-se ao PL 3/2025, destacando sua importância.
A Recomendação atribui ao CNJ a função de gestão judicial, voltada à adoção de medidas de administração judiciária com o objetivo de auxiliar os tribunais e seus membros na condução dos processos da forma mais adequada e eficiente possível, mediante a distribuição racional de recursos no processo e a recomendação de soluções mais adequadas aos conflitos, conforme o princípio da eficiência processual.[3]
A comparação entre os dois instrumentos normativos – a Recomendação do CNJ e o PL 3/2025 – revela convergências conceituais e procedimentais. Mas há, entre ambos, diferenças significativas em relação à natureza jurídica, à obrigatoriedade e à amplitude de sua vinculação.
Ambos reconhecem que os litígios complexos exigem técnicas próprias, como a multipolaridade, o diálogo institucional e a flexibilização procedimental. Valorizam soluções consensuais, transparência, apoio técnico ao juízo e uso de planos estruturais para monitorar a execução e assegurar o cumprimento das medidas destinadas à superação do problema estrutural.
Quanto à consensualidade, ressaltam a importância da resolução consensual e preventiva dos conflitos estruturais, com incentivo ao diálogo entre juiz, partes e interessados, por meio de consultas, audiências públicas e oitiva de especialistas. A Recomendação do CNJ orienta os tribunais a criarem espaços para acordos e estimula o Judiciário a promover, sempre que possível, soluções autocompositivas (art. 3º, §§ 2º e 3º, do CPC).[4]
Sobre a publicidade, tanto o PL 3/2025 quanto a Recomendação do CNJ enfatizam a importância da transparência nos processos estruturais. Em especial, a Recomendação orienta os tribunais a divulgar, em seus sítios, informações gerais sobre os processos: seu objeto, providências adotadas e efeitos das decisões. Essa transparência reforça a accountability do Judiciário, sobretudo em casos que envolvem direitos fundamentais e intervenção judicial em políticas públicas.
A principal distinção está na natureza normativa: o PL, se aprovado, terá força cogente; a Recomendação possui caráter orientativo, permitindo maior flexibilidade e adaptação pelos tribunais. Ainda assim, a recomendação antecipa e sistematiza práticas de court management aplicadas aos processos estruturais, reafirmando a função de administração judiciária do CNJ.
Além disso, destaca-se que a Recomendação do CNJ não viola a Constituição Federal. Embora trate de aspectos sobre a forma da atuação judicial em processos estruturais, tais disposições não violam o art. 22, I, da Constituição Federal, uma vez que não dispõe sobre normas de direito processual. O conteúdo do ato normativo estabelece diretrizes que visam ao tratamento adequado de litígios estruturais pelos tribunais e seus juízes, dentro dos limites constitucionais de sua atuação normativa.
O objetivo da recomendação é garantir um mínimo de racionalidade, com fundamento na segurança jurídica, na razoável duração do processo (art. 5°, LIV, LV e LXXVIII, da CRBF/88) e no princípio da eficiência aplicável à Administração Pública (art. 37, caput, da CRFB/88), inclusive no âmbito da eficiência processual.
É, portanto, constitucional, legal e legítimo que o CNJ proponha e recomende aos tribunais o uso de técnicas processuais ou de tratamento adequados diversos do modelo tradicional de processo. Trata-se de expressão de sua função de administração judiciária ou de gestão judicial (court management), nos termos do art. 103-B, §4º, caput, incisos I e II da Constituição Federal.[5]
A consolidação desse regime normativo, contudo – seja no caso do PL, que dependerá da aprovação legislativa, seja na Recomendação do CNJ –, depende da capacidade institucional de articular recursos e competências para a efetiva implementação das medidas propostas.
O desafio está em converter consensos normativos em rotinas institucionais estáveis e transparentes, garantindo que o processo estrutural cumpra sua função de proteção de direitos fundamentais. O aprimoramento da resposta institucional — inclusive quanto à gestão e administração judiciária — exige o engajamento dos tribunais na adoção das diretrizes do CNJ.
O compromisso com a racionalidade processual e a efetividade dos direitos fundamentais exige o reconhecimento de que os processos estruturais demandam soluções específicas, com participação, planejamento técnico e gestão adequada. Ao institucionalizar boas práticas, a Recomendação do CNJ reafirma sua missão de zelar pela eficiência e pela qualidade da atividade jurisdicional.[6]
Desse modo, mais do que uma sobreposição normativa, a relação entre a Recomendação do CNJ e o PL 3/2025 representa um esforço conjunto para consolidar um novo paradigma no tratamento de litígios estruturais, estabelecendo diretrizes para a atuação do Poder Judiciário nacional no tema.
[1] BRASIL. CNJ. Inteiro teor do processo administrativo. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=260ecc6dd21e3073cea58094ec9651b88e57734f66d74c63. Acesso em 16/06/2025.
[2] BRASIL. CNJ. Voto do relator com a fundamentação a fim de justificar a elaboração do ato normativo com base no princípio da eficiência, em especial a eficiência processual, e na administração e gestão judiciária (court management). Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=66969be275b98a4ae55c302ec1e77ff8bdca3faeec621733579765a95559f6d36ccbe9b67e74b155c80913bf78cad6f539b484d172d84d8e&idProcessoDoc=6060823. Acesso em 16/06/2025.
[3] Sobre o tema, na visão que o autor chama a distribuição racional de recursos nos processos judiciais de “proporcionalidade processual” e “panprocessualidade”, ver: ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos interesses individuais homogêneos. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. ARENHART, Sérgio Cruz. Relendo o princípio da demanda: a congruência sob o crivo da proporcionalidade processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025.
[4] Sobre o tema, ver DELLÊ, Felipe. O acordo de (in)constitucionalidade: os limites, as possibilidades e as respostas institucionais do Supremo Tribunal Federal. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós graduação em Direito, Curitiba, 342 f., 2025.
[5] ANDREATINI, Lívia Losso. O devido saneamento e organização do processo: funções e técnicas processuais. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2024; DELLÊ, Felipe. O acordo de (in)constitucionalidade: os limites, as possibilidades e as respostas institucionais do Supremo Tribunal Federal. Op. Cit, p. 36-37, 72, 216-219;
[6] TOSCAN, Anissara. Núcleos de Justiça 4.0: sandboxes para a experimentação judiciária. In: Revista de Processo, vol. 361, p. 419 – 447, versão eletrônica, 2025; DIDIER JR, Fredie. FERNANDEZ, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o Direito Processual: Administração Judiciária, boas Práticas e Competência Normativa. 4ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2025, p. 199-218.