Arbitragem: tradição ancestral, desafios contemporâneos

A resolução de conflitos sem a intervenção do Estado — essência e vocação da arbitragem —, embora frequentemente apresentada como uma inovação dos tempos modernos, na verdade, remonta a práticas ancestrais, muito anteriores à constituição dos sistemas judiciais estatais tal como os conhecemos.

Na Grécia Antiga, inclusive no apogeu da Atenas clássica, grande parte dos litígios era solucionada à margem das instâncias estatais, por meio de acordos diretos, mediação ou arbitragem privada, antes que se recorresse à jurisdição formal da pólis.[1] 

Essa lógica da autocomposição não se limitava às relações entre indivíduos, estendendo-se também às próprias cidades-estado, que recorriam com frequência à mediação e à arbitragem para resolver disputas territoriais, comerciais e diplomáticas.[2] E também em Roma a arbitragem ocupava um lugar central na administração da chamada justiça privada.[3]

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A arbitragem, portanto, não é um fenômeno moderno, mas sim uma instituição atemporal, mais antiga — e em muitos aspectos mais enraizada — do que o próprio Estado-juiz.

Sob uma perspectiva filosófica, a arbitragem traduz a mais genuína expressão da autonomia privada. Na ética libertária, ela representa, inclusive, o futuro natural da própria justiça, baseada na livre escolha e na concorrência entre jurisdições, pois, como observa Rothbard, “in a libertarian society, there would be many courts, many judges to whom one could turn”. Representa, em essência, a afirmação de um ideal de liberdade — não apenas de contratar, mas também de se autodeterminar na gestão e na solução de conflitos.

No contexto contemporâneo, a arbitragem voltou a ganhar centralidade, sobretudo impulsionada pela expansão do comércio internacional e pela busca por soluções mais eficientes, previsíveis e seguras — atributos que contrastam fortemente com a lentidão, a burocracia e a rigidez formal que caracterizam, não raro, a jurisdição estatal.

Entre os diversos méritos da arbitragem, destaca-se sua incomparável eficácia no plano internacional. Amparadas pela Convenção de Nova York de 1958, as sentenças arbitrais gozam de reconhecimento e exequibilidade em centenas de jurisdições ao redor do mundo, com uma fluidez que está muito além daquela conferida às decisões judiciais estrangeiras.

Essa característica não é mero detalhe operacional, mas sim uma vantagem estratégica decisiva, especialmente em contratos internacionais, nos quais neutralidade, previsibilidade e exequibilidade transcendem o plano do desejável e se tornam condições existenciais para a própria viabilidade do negócio. Em termos práticos, executar uma sentença arbitral no exterior é significativamente mais simples, ágil e seguro do que executar uma sentença emanada do Judiciário estatal.

Por essas razões, no cenário das operações comerciais transnacionais, a arbitragem deixou de ser uma opção e tornou-se uma verdadeira cláusula de sobrevivência. Nenhuma das partes precisa se submeter à jurisdição soberana da outra, tampouco se expor aos riscos de interpretações locais idiossincráticas do direito.

Ambas podem pactuar um foro neutro, selecionar árbitros tecnicamente qualificados e estabelecer, desde a gênese do contrato, as regras que regerão eventuais disputas. Essa previsibilidade não constitui apenas um conforto jurídico: ela se converte, na prática, em um ativo estratégico de altíssimo valor. Em certos mercados, negociar sem cláusula compromissória sequer é uma alternativa admissível.

Entretanto, no contexto brasileiro, a promessa de celeridade, eficiência e racionalidade da arbitragem nem sempre se concretiza. Isso se deve, em boa medida, à persistência de uma cultura beligerante que ainda contamina parte significativa dos operadores do Direito.

Não é raro observar que, uma vez trasladados ao ambiente arbitral, advogados e partes reproduzem os mesmos vícios e disfunções do processo judicial estatal: litigância predatória, expedientes protelatórios, condutas personalistas e estratégias que pouco ou nada têm a ver com a lógica colaborativa que deveria pautar o procedimento arbitral.

E não é incomum testemunhar práticas em que profissionais, protegidos pelo verniz da sofisticação técnica, deliberadamente prolongam arbitragens de baixa complexidade com o único e inequívoco propósito de majorar suas próprias horas faturáveis. Trata-se de uma captura silenciosa do instituto por dinâmicas de oportunismo econômico travestidas de diligência processual.

Esses comportamentos não apenas distorcem a lógica da arbitragem como comprometem de forma contundente sua promessa de eficiência. Quando as partes passam a enxergar a arbitragem como uma mera transposição do litígio estatal para um foro privado — porém igualmente combativo —, mesmo a engenharia procedimental mais sofisticada sucumbe diante do excesso de litigiosidade. A arbitragem, que deveria ser um ambiente de composição qualificada de interesses, degrada-se em mais uma arena de confronto — privada, dispendiosa, sigilosa e tão lenta quanto o Judiciário.

Paradoxalmente, aquilo que constitui a maior virtude da arbitragem, a definitividade das decisões, é também a fonte de sua maior fragilidade. A sentença arbitral, via de regra, é irrecorrível. Isso significa que decisões técnica ou materialmente equivocadas, desarrazoadas ou mesmo manifestamente injustas produzem efeitos definitivos e vinculantes. A impossibilidade de reexame do mérito, ainda que diante de erros gritantes ou de flagrantes desequilíbrios, impõe um ônus pesado às partes, tudo em nome da celeridade e da estabilidade do sistema.

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A doutrina é praticamente unânime ao afirmar que o único requisito para a sentença arbitral produzir efeitos vinculantes é a sua fundamentação formal, ainda que esta seja tecnicamente frágil, pouco convincente ou até logicamente falaciosa: “bad or unpersuasive reasons are still reasons […]”[4].

Optar pela arbitragem, portanto, significa assumir conscientemente esse risco. Para alguns, trata-se de uma virtude do sistema: a previsibilidade e a definitividade seriam valores superiores, que justificam o sacrifício de eventuais revisões. Para outros, não se pode ignorar o desconforto legítimo diante da possibilidade de que injustiças materiais fiquem definitivamente consolidadas sob a aparência de neutralidade e sob o manto da autoridade formal do laudo arbitral.

O propósito deste ensaio é, acima de tudo, iluminar os riscos, as tensões e as fragilidades que muitas vezes são ignoradas no discurso quase ufanista que se formou em torno da arbitragem. Trata-se, sem dúvida, de um instrumento sofisticado, poderoso e indispensável na prática jurídica contemporânea. Mas é também uma ferramenta que carrega desafios significativos, que não podem, nem devem, ser subestimados.

Em última análise, a arbitragem reflete, de maneira muito precisa, o grau de maturidade institucional e ética de uma sociedade. Quanto mais técnica, ética e racional for sua aplicação, menores os riscos de que se transforme em instrumento de iniquidade. Trata-se, sem dúvida, de um mecanismo extraordinário — flexível, eficiente e adaptável —, mas que, como todo instrumento de poder, não é imune ao mau uso.

Maus atores, movidos por interesses alheios ao espírito do instituto, podem capturar a própria lógica que lhes confere autonomia, distorcendo seus princípios, onerando desnecessariamente os procedimentos e, no limite, transformando o que deveria ser solução em mais um problema. Reconhecer as virtudes da arbitragem não significa ignorar seus riscos. Pelo contrário: é justamente a consciência desses riscos que permite fortalecer o instituto, protegê-lo contra distorções e preservar sua credibilidade.

[1] CHRIST, M. R. The litigious Athenian. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998. p.165

[2] CHANIOTIS, Angelos. Justifying territorial claims in Classical and Hellenistic Greece: the beginnings of international law. In: HARRIS, Edward M.; RUBINSTEIN, Lene (eds.). The law and the courts in ancient Greece. London: Duckworth, 2004. p. 185-213.

[3] CARREIRA ALVIM, J. E. Direito arbitral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.2

[4] BORN, Gary. International Arbitration: Law and Practice. Wolters Kluwer. Alphen aan den Rijn. 2012. p.283.

BORN, Gary. International Arbitration: Law and Practice. Wolters Kluwer. Alphen aan den Rijn. 2012. p.283.

CARREIRA ALVIM, J. E. Direito arbitral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.2

CHRIST, M. R. The litigious Athenian. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998. p.165

GAGARIN, Michael. Early Greek Law. Berkeley: University of California Press. 1986. p.21.

ROTHBARD, Murray Newton. For a New Liberty: The Libertarian Manifesto. 2. ed. New York: Macmillan Publishing, 1973.

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