“To dream the impossible dream
To fight the unbeatable foe
To bear with unbearable sorrow
To run where the brave dare not go
To right the unrightable wrong
To love pure and chaste from afar
To try when your arms are too weary
To reach the unreachable star
This is my quest to follow that star
No matter how hopeless, no matter how far
To fight for the right without question or pause
To be willing to march into hell for a heavenly cause
And I know if I’ll only be true to this glorious quest
That my heart will lie peaceful and calm
When I’m laid to my rest
And the world will be better for this
That one man, scorned and covered with scars
Still strove with his last ounce of courage
To fight the unbeatable foe
To reach the unreachable star”
(The Impossible Dream – The Quest, Mitch Leigh e Joseph Darion)
‘Sonhar o sonho impossível. Lutar contra o inimigo imbatível. (…)’
Em 1965, inspirado no romance Dom Quixote de Miguel de Cervantes, o musical O Homem de La Mancha estreou na Broadway. O musical narra a história de Alonso Quijana, um fazendeiro idoso que enlouquece e decide tornar-se um cavaleiro andante, recrutando Sancho Pança, um camponês, como seu fiel escudeiro, para juntos corrigirem as injustiças do mundo e honrarem Dulcinéia, uma prostituta vista por Dom Quixote como dama virtuosa, cujo nome real é Aldonza. O Homem de La Mancha aborda temas universais: os conflitos entre idealismo e realidade, transformação e redenção, esperança e perseverança. É nesse contexto que é cantada a música que introduz o presente capítulo.
Sonhar o sonho impossível e lutar contra o inimigo imbatível é uma escolha intencional e deliberada. Envolve desafiar a realidade na crença de que concretizar uma utopia é possível, basta coragem e perseverança. Foi o que fizemos.
Em 2014, inspirados na tributação sobre o consumo adotada na maioria dos países desenvolvidos, estreamos o projeto “Nossa Reforma Tributária”, no Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. No ano seguinte, referido projeto informou a criação do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), think tank independente cuja missão institucional era contribuir para o aprimoramento das políticas públicas no Brasil.
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Juntos, Bernard Appy, Nelson Machado, Isaías Coelho e eu sonhamos o sonho impossível de instituir uma tributação sobre o consumo neutra, simples, transparente e equitativa, que acabasse de uma vez por todas com tributos irracionais (ISS, ICMS, IPI, PIS/COFINS) que há décadas mascaravam o verdadeiro ônus tributário suportado pelo indivíduo. Sonhamos o sonho impossível de transformar uma legislação esparsa, confusa, obscura, e que privilegiava grupos com força política, em uma legislação única, uniforme, acessível e que fosse aplicada a todos indistintamente.
À época, nossas discussões acerca da reforma tributária pareciam para muitos uma utopia. Após tantas tentativas de reformas tributárias propostas na história do país – entre as quais, a proposta Collor em 1992, a proposta Rigotto/Demes em 1995 no governo FHC, e a proposta Palocci/Mabel em 2008 no governo Lula – nossa visão de como deveria ser a legislação tributária sobre o consumo soava para muitos como uma alucinação quixotesca.
Nossos ideais de neutralidade, simplicidade, transparência e equidade ecoavam entre os tributaristas como devaneios. Ainda assim, não desistimos. Perseveremos em nossos encontros e discussões semanais no NEF e no CCiF com a fé inabalável de que o impossível poderia um dia se tornar realidade. Convidamos os mais qualificados representantes da academia, empresas, auditores fiscais e advogados e durante quase dez anos perseveramos.
‘Correr onde os bravos não ousam ir. Corrigir o erro incorrigível. Tentar quando os braços estão exaustos’
Durante quase uma década realizando o design normativo da legislação que culminou na EC 132/23 e na LC 214/25 tínhamos uma convicção: a necessidade de superação do paradigma do crime e de desvirtuamento da legalidade. A antiga tributação sobre o consumo pautava-se, em larga medida, em uma relação de antagonismo entre fisco e contribuinte. Havia uma completa inversão de papéis. De um lado, ao contribuinte havia sido transferida a função de interpretar e aplicar a legislação e, do outro, ao fisco havia sido assegurado o direito de sancionar o contribuinte caso o seu entendimento não convergisse para aquele adotado posteriormente pela fiscalização.
Como tive a oportunidade de me posicionar em recente debate com José Tostes[1], em vez de a autoridade fiscal interpretar e aplicar a lei, ela transferia tal competência ao contribuinte, por meio da figura do tão-chamado lançamento por homologação, sancionando-o em todos aqueles casos em que era incapaz de antecipar a própria interpretação da autoridade fiscal.[2]
É exatamente por isso que, desde 2015, sustento que não por acaso o principal instrumento da realização da complexa legalidade tributária brasileira, responsável por cerca de 96% da arrecadação da Receita Federal, chama-se “lançamento por homologação”. Trata-se de técnica pela qual o Fisco federal se DESresponsabiliza pela sistematização e interpretação da legislação tributária, delegando para o próprio contribuinte o dever de interpretar, aplicar e pagar antecipadamente o tributo devido por sua conta e risco.[3]
Tal lógica de transferir para o particular as responsabilidades e os deveres da administração tributária de interpretar e aplicar as próprias leis, surgida no início da década de 1960, em época marcada pela ausência da tecnologia de informação, instalou o que chamamos de “Maldição do Lançamento por Homologação”: inversão de papeis perversa em que a administração pública se torna refém da complexidade de suas próprias leis, omitindo-se em informar e antecipar seus critérios de interpretação da legislação tributária e, ainda, obriga o contribuinte a antecipar-se na solução do enigma da pirâmide normativa tributária.
Assim, o CONTRIBUINTE ILUMINADO além de ser obrigado a informar o fato gerador (emitindo nota fiscal, declarações, GAREs, DCTFs etc) é obrigado a entender, interpretar e aplicar uma legislação tributária incompreensível. Pior. O contribuinte tem 30 dias após o fato gerador para realizar essa tarefa e a administração tributária goza do prazo de 5 anos não só para realizar o lançamento de ofício, mas para alterar interpretação anterior e/ou identificar nova interpretação que seja mais vantajosa para a arrecadação – com direito a multas de 150% sob alegação de fraude do contribuinte na interpretação da legislação tributária). Há flagrante desvio de finalidade dos objetivos da regra decadencial que seria criar segurança jurídica através da delimitação do tempo para formalizar o crédito e não, ao contrário, se aproveitar o tempo do prazo de caducidade para encontrar uma interpretação mais vantajosa para os cofres públicos.
Na “Nossa Reforma Tributária”, propusemos uma ruptura total com tal inversão do princípio da legalidade tributária e com o paradigma do crime visando a corrigir o que até então era incorrigível. No lugar da sanção, desenhamos mecanismos que buscassem promover a maior integração e cooperação entre fisco e contribuinte, não apenas para alinhar a administração tributária às diretrizes da OCDE, como também para incentivar o maior compliance tributário e promover uma tributação mais justa.
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Nesse sentido, como apontado por José Tostes, duas são as grandes transformações na Administração Tributária.[4] Primeiro, graças aos avanços tecnológicos, agora a autoridade fiscal irá antecipar-se à declaração do contribuinte, oferecendo-lhe a oportunidade de contar com uma apuração assistida ou ainda com uma declaração pré-preenchida. O objetivo é realocar a atividade de administração e fiscalização tributária nas mãos da autoridade fiscal. Por meio de um ecossistema tecnológico integrado, o sistema arrecadatório poderá ser acoplado aos sistemas naturais do contribuinte, facilitando o cálculo e pagamento do tributo devido em cada operação por ele realizada.
Segundo, agora a autoridade fiscal deverá agir de modo mais cooperativo com o contribuinte. Novamente, inverte-se por completo a sistemática da antiga tributação sobre o consumo: se antes as questões de interpretação e aplicação da lei ficavam à cargo do contribuinte, podendo ser homologadas ou não pela autoridade fiscal, agora tais questões poderão ser objeto de discussão prévia entre os dois, de sorte que a entrega da declaração tributária representará o fim, e não o começo, do processo tendente a verificar a ocorrência e dimensionar o fato gerador.
Além da necessidade de superação do paradigma do crime e de desvirtuamento da legalidade, também estávamos convictos da necessidade de concretizar efetivamente o federalismo de cooperação entre os distintos entes federativos. Muito embora o art. 199 do CTN estabeleça que “A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio”, a prática brasileira revela um federalismo conflituoso.
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A título meramente exemplificativo, não apenas os distintos Estados da Federação brigavam entre si na guerra fiscal de ICMS, como também Estados e Municípios protagonizavam incontáveis disputas judiciais destinadas a determinar se o contribuinte deveria recolher ICMS ou ISS sobre uma determinada operação por ele praticada. Com a Reforma Tributária, inaugura-se, finalmente, um real federalismo cooperativo. Por meio da harmonização de normas e procedimentos, busca-se evitar duplicidade de esforços e desperdícios de recursos.
Em suma, com a Reforma Tributária deu-se um grande passo rumo à mudança de cultura da relação fisco-contribuinte, em prol de conformidade cooperativa, e à consolidação de um real federalismo de cooperação.
‘Alcançar a estrela inalcançável. Esta é minha busca, seguir aquela estrela’
Na canção de O Homem de La Mancha, a estrela representa o guia e o destino: ela direciona o rumo da ação e ao mesmo tempo é o seu fim último. Nossa estrela sempre foi uma tributação sobre o consumo neutra, simples, transparente, que buscasse instituir um regime de cooperação entre contribuintes e fisco, de um lado, e os diferentes entes federativos, do outro.
Para muitos, essa estrela era inalcançável, seja porque demandaria uma vontade e concordância política impossíveis de serem verificados na realidade brasileira, seja porque representariam meros vetores axiológicos de difícil aplicação concreta. Aprovada a reforma tributária, posso dizer: sonhamos o sonho impossível. Ao contrário de Dom Quixote, porém, vivemos para ver nosso sonho idealizado tornar-se realidade.
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[1] José Barroso Tostes Neto é o Coordenador do GT NEF DIREITO FGV que trata e analisa os problemas e desafios da Zona Franca de Manaus. É senhor de uma trajetória acadêmica e profissional excepcional: foi Ex-Secretário Especial da Receita Federal. Foi Auditor Fiscal da Receita Federal, Superintendente Regional e Coordenador de Administração Aduaneira da Receita Federal do Brasil. Também foi Secretário Estadual de Fazenda do Pará e Presidente do COMSEFAZ. Especialista em Gestão Fiscal do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Consultor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Atualmente é Consultor Tributário.
[2] SANTI, Eurico Marcos Diniz de; TOSTES NETO, José Barroso. “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária – Aula 17: CBS/IBS e Administração Tributária do Séc. XXI.” Curso sobre a Reforma Tributária. Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=xIcgNbuunhk&t=10s, acesso em 05.07.2025.
[3] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. “O ‘iluminado’ ou ‘a maldição’ do lançamento por homologação.” Jota. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-iluminado-ou-a-maldicao-do-lancamento-por-homologacao. Acesso em 05.07.2025.
[4] SANTI, Eurico Marcos Diniz de; TOSTES NETO, José Barroso. “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária – Aula 17: CBS/IBS e Administração Tributária do Séc. XXI.” Curso sobre a Reforma Tributária. Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=xIcgNbuunhk&t=10s, acesso em 05.07.2025.