No último 30 de junho, foi publicada a Portaria do MJSP 961 que estabelece diretrizes para o uso de novas tecnologias de informação em atividades de investigação criminal e inteligência de segurança pública. Trata-se de iniciativa que rompe com um prolongado silêncio parlamentar sobre o tema.
Desde a LGPD, o campo da segurança pública vem aguardando uma lei própria, especialmente por conta da vedação expressa de aplicação das regras da LGPD para investigação criminal e segurança. Nem o anteprojeto da LGPD penal de 2020, desenvolvida por uma comissão de juristas especialistas, e sua contraproposta autoritária, o PL 1515/2022[1], além do PL 2338/23, parecem não ter sido capazes de formar um consenso mínimo apto a fazer a pauta seguir no Congresso.
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O Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), via Secretaria de Direitos Digitais (SEDIGI), antecipando-se ao Congresso, traz diretrizes importantes, em termos similares àqueles do anteprojeto, embora com até mais atenção a detalhes fundamentais caros à área penal.
A ação do ministério não vem sem risco, já que há no texto elementos passíveis de exame de constitucionalidade formal, por possivelmente avançar sobre a competência exclusiva da União em legislar matéria processual penal.
Não obstante a portaria do MJSP ser uma medida louvável e técnica, ela não substitui a necessidade de uma lei — ao contrário, torna-a ainda mais urgente.
O uso de técnicas de IA na segurança pública, o que inclui o tratamento de dados pessoais em massa, torna mais evidente a sobreposição de categorias do processo penal com atividades que historicamente ficaram no âmbito da autonomia policial.
O policiamento preditivo, baseado em dados, ostensivo-digital, por IA ou por algoritmos, ou qualquer outro termo que indique a presença policial no mundo digital ou como destinatária imediata de dados em massa, para além dos já conhecidos institutos da infiltração virtual, geofencing, hacking, etc., são aptos a colocar em xeque a atividade de IA na segurança pública como espaço livre da regulação legal e jurídica.
Um desafio é distinguir o tratamento de informações direcionado à produção de conhecimento para políticas públicas daquele direcionado à produção de informação e prova em investigações, o que inclui a coleta de dados de geolocalização e identificação de padrões suspeitos.
Não sendo por lei específica ou por autorregulação (caso do MJSP), eventualmente caberá ao Judiciário a tarefa de, a passos curtos e erráticos no casuísmo típico da atividade judicante, preencher as lacunas do déficit legislativo[2].
A regulação via Judiciário é temerária, está sujeita à seletividade do acesso à Justiça e não é desenvolvida com o necessário debate amplo e democrático que o Poder Legislativo permite. Persistindo a omissão, é possível que o STF venha a ser invocado a enfrentar o tema, como ocorreu na controvérsia sobre o artigo 19 do MCI, tensionando mais uma vez sua legitimidade.
O que pode explicar a ausência de uma LGPD penal?
De início, há interesses aparentemente inconciliáveis no campo. A ausência de lei, em vez de produzir insegurança e recuo na aplicação de novas técnicas, garante espaços de atuação livre, o que é mantido, por outro lado, pela falta de instrumentos dogmáticos aptos a questionar judicialmente tais práticas. Contando com isso, setores do campo atuam para adiar o tanto quanto possível uma lei que, equivocadamente, é entendida como limitadora da atuação policial.
Isso reflete uma histórica autonomia do campo da atividade policial, um véu de imunidade do campo em relação à força dos direitos. A concepção de que direitos são um entrave à eficiência do combate ao crime ainda se faz presente no ideário da segurança pública.
Outra dificuldade ao avanço da LGPD penal decorre da própria anatomia disfuncional do campo[3], marcado pela heterogeneidade dos registros criminais entre estados, reduzida qualificação técnica de operadores em setores especializados e precária condição técnica e política para integração nacional de dados. A gestão da informação, apesar dos esforços desde o Infoseg (1997), SINESP (2012), até o SUSP (2018), segue sendo tratada como secundária nas instituições, com difícil interoperabilidade, baixa confiabilidade e transparência[4].
Na medida que as atividades de IA avança sobre direitos fundamentais, com riscos sequer bem mensurados na experiência política, eles passam a demandar intervenção judicial.
Sem legalidade o quanto mais precisa e específica possível, dentro da gramática própria da área penal, sustentaremos o quadro de insegurança jurídica, falta de integração nacional na gestão da informação e ausência de padronização sobre o uso de IA. Esse cenário amplifica os efeitos deletérios do tratamento de dados pessoais por algoritmos.
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Após anos de uso em diversos países, não há comprovação da eficácia do policiamento preditivo[5] [6]. Modelos de machine learning não seguem o rigor do método científico, respondendo mais a intuições e promessas de eficiência do que a evidências, revelando-se mais como alquimia que ciência[7]. Não é possível afirmar que os benefícios superam os riscos.
Além disso, são abundantes as pesquisas que indicam o viés racista dos processos algorítmicos. Sem diretrizes que orientam as novas técnicas policiais por meio de dados para não reproduzirem as mazelas de uma sociedade marcada pelo racismo estrutural e com diferenças regionais e nos espaços urbanos, o cuidado deve prevalecer sobre o entusiasmo. Reconhecer a assimetria informacional[8] entre diferentes grupos na sociedade é também essencial para a construção de novos institutos e categorias jurídicas de proteção.
A recente portaria do MJSP avança no caminho da regulação racional do tratamento de dados pessoais, porém o faz mais para desafiar a inércia do Congresso do que para colocar um ponto final no tema.
[1] A comparação entre o Anteprojeto e o PL 1515/22 foi muito bem elaborada em parecer técnico pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). AZEVEDO, Cynthia Picolo Gonzaga de; LIMA, Eliz Marina Bariviera de; SILVA, Felipe Rocha da; RODRIGUES, Gustavo Ramos; DUTRA, Luiza Corrêa de Magalhães; SANTARÉM, Paulo Rená da Silva; RODRIGUES, Victor Barbieri Vieira Rodrigues. Nota técnica: análise comparativa entre o anteprojeto de LGPD penal e o PL 1515/2022. Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN), novembro de 2022. Disponível em: Acesso em: 30/06/2025.
[2] ARAS, Vladimir. Aplicabilidade da LGPD às atividades de segurança pública e persecução penal. JOTA, 30 abr. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/aplicabilidade-da-lgpd-as-atividades-de-seguranca-publica-e-persecucao-penal. Acesso em: 23 jun. 2025.
[3] IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Dados nacionais em segurança pública (2022-2023). Brasília: Ipea, 2025. DOI: https://dx.doi.org/10.38116/ri-anuario-estatistico-2022-2023
[4] FIGUEIRA, Marcelle Gomes. Proposta de uma matriz de indicadores para as ações de gestão de informação da SENASP. RBSP, SP: v. 9, n. 2, p. 110–128, out./set. 2015. DOI: 10.31060/rbsp.2015.v9.n2.503.
[5] COELHO, Danilo S. C. Inteligência Artificial em Justiça e Segurança Pública: Exemplos e Recomendações para Políticas Públicas. Nota técnica n. 65, Diest-Ipea, 2024.
[6] LEE, Youngsub; BRADFORD, Ben; POSCH, Krisztian. The Effectiveness of Big Data-Driven Predictive Policing: Systematic Review. Justice Evaluation Journal, 2024. doi: 10.1080/24751979.2024.2371781
[7] FILGUEIRAS, Fernando. Machine Learning: evidências ou alquimia em políticas públicas no Brasil? IPEA Boletim de Análise Político-Institucional, n. 37, mar. 2024 http://dx.doi.org/10.38116/bapi37art12.
[8] FERNANDES, Fernando Andrade; RESENDE, Ana Paula Bougleux Andrade. Regulamentação do tratamento automatizado de dados pessoais em matéria penal. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 3, n. 1, p. 471-500, jan./jun. 2023. DOI: https://doi.org/10.53798/suprema.2023.v3.n1.a207.2