A política comercial de um país, embora vital para a proteção de indústrias estratégicas, exige uma calibração fina que evite distorções e impactos indesejados sobre a economia em geral. No Brasil, a atual investigação antidumping sobre as importações de folhas metálicas de aço da China ilustra essa complexidade, colocando em xeque o equilíbrio entre a defesa de um setor específico e a manutenção da estabilidade de preços e emprego em cadeias produtivas essenciais.
A discussão central reside na aplicação de sobretaxas às folhas metálicas de aço, matéria-prima fundamental para a indústria de embalagens de aço. No cenário doméstico, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) destaca-se como a única produtora nacional desse insumo, ou seja, monopolista. Além disso, a CSN possui relevantes fabricantes de embalagens de aço, o que configura uma integração vertical com implicações significativas para o mercado concorrencial.
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A indústria brasileira de embalagens de aço, composta por algumas dezenas de empresas, muitas delas centenárias, desempenha um papel crucial no abastecimento de diversos segmentos, desde alimentos e bebidas até produtos químicos e tintas. Notavelmente, as latas são 100% recicláveis e efetivamente recicladas, um atributo de peso na agenda de sustentabilidade global e na transição para uma economia circular, aspecto que o Brasil busca enfatizar, especialmente em vistas à COP 30.
A controvérsia surge da alegação de que a dependência de um único fornecedor doméstico para a folha de aço para embalagens tem gerado desafios tecnológicos, de qualidade e conformidade para os fabricantes de latas. Relatos do setor indicam que a decisão de importar não se baseia primordialmente em preço, mas na necessidade de garantir evolução tecnológica para as latas, segurança e estabilidade dos produtos embalados, como alimentos, aerossóis e rolhas metálicas para bebidas carbonatadas. A ausência de um similar nacional com a qualidade exigida para certas aplicações levanta a preocupação com o risco de desabastecimento e desorganização produtiva.
A imposição de direitos antidumping provisórios, que variaram de 20% a quase 37%, já demonstrou impactos. Análises econométricas indicam que, embora o preço médio das importações tenha aumentado, as quantidades importadas não diminuíram, sugerindo que a medida não alcançou o objetivo de reduzir a entrada do produto importado, mas sim elevou seus custos.
O ponto crucial para a economia nacional reside na composição de custos. As folhas metálicas de aço representam uma parcela significativa, podendo chegar a 70% do custo de produção das latas de aço. Adicionalmente, as embalagens participam em média com 20% do custo de produção de alimentos enlatados, podendo ultrapassar 25% em alguns produtos como a sardinha.
Um dado socialmente relevante é que o consumo de alimentos embalados em latas de aço é, em alguns casos, concentrado nas classes de renda mais baixas, com a maioria dos produtos pertencendo à cesta básica. Estimativas indicam que a sobretaxa pode gerar um aumento de até 7,4% no custo de produção e quase 5% no preço de venda da indústria para produtos da cesta básica.
Essa elevação nos preços de itens essenciais, como vegetais em conserva e leite em pó, teria um impacto direto e regressivo sobre o poder de compra das famílias brasileiras, especialmente aquelas com renda de até dois salários mínimos, que já destinam uma proporção maior de seus gastos a esses itens. O impacto total para 72 milhões de famílias brasileiras pode atingir R$ 4,3 bilhões em 5 anos, somente via custos de alimentos enlatados. Além disso, outras cadeias, como de produção de tintas e o setor de bebidas também seriam afetadas.
A divergência sobre os indicadores de dano à indústria doméstica também merece atenção. Embora o governo tenha apontado alguns indicadores negativos, a própria análise reconheceu a melhora ou estabilidade de outros indicadores da empresa, como a receita líquida e a capacidade de captar recursos ao longo do período investigado.
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A falta de uma distinção clara entre os efeitos das importações alegadamente a preço de dumping e outros fatores, como a queda nas exportações da peticionária ou problemas de gestão interna, enfraquece o nexo causal. A recente abertura de investigações antidumping contra folhas metálicas de aço da Alemanha, Japão e Países Baixos, da mesma peticionária, CSN, com sobreposição de períodos investigados, sugere uma complexidade de fatores que vai além da atuação de um único país exportador.
A decisão final do governo sobre a sobretaxa das folhas metálicas de aço precisa considerar um quadro econômico e social mais amplo. Proteger um setor, embora legítimo, não pode implicar em onerar desproporcionalmente a cadeia a jusante, impactar a inflação em produtos essenciais e colocar em risco a empregabilidade em segmentos que geram um número significativamente maior de postos de trabalho. A moderação e a análise criteriosa dos impactos sistêmicos são fundamentais para assegurar que as políticas de defesa comercial contribuam para o desenvolvimento equilibrado e sustentável da economia brasileira.