Ius Constitutionale Commune na América Latina, direitos sociais e democracia

As decisões da Corte IDH reafirmam a indissociabilidade entre os direitos sociais e o fortalecimento da democracia. A Carta da OEA, em seu preâmbulo, prevê a democracia representativa como um de seus princípios, e o Protocolo de San Salvador (preâmbulo, artigo 5º, artigo 8º, alínea B, inciso 2; e artigo 13, inciso 2) esboça uma lógica em que o substrato da garantia dos direitos sociais pressupõe uma sociedade democrática.

Se a democracia fundamenta e depende da garantia dos direitos humanos para seu sustento, a proteção dos direitos sociais guarda uma relação diretamente proporcional com essa garantia.

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Quanto maior a garantia da democracia, maiores são as garantias dos direitos sociais. Há uma mútua influência entre ambos e se percebem realidades diretamente proporcionais, quais sejam, a de que o fortalecimento da forma de governo democrático contribui diretamente para a proteção dos direitos sociais e vice-versa.

A democracia se caracteriza justamente pela liberdade de escolha e, sem esta, não se sustenta, ou seja, se não há meios materiais para a atuação democrática a democracia permanece apenas em quesitos formais, minando as benesses da própria vivência democrática da população.

Especificamente no contexto do Sul Global, em países em desenvolvimento, é preciso igualar aos atores do processo democrático, para que a representatividade do processo de escolha seja legítima. Logo, apenas a garantia do direito ao voto ou o estabelecimento periódico de eleições é insuficiente para a caracterização de uma sociedade democrática.

No contexto político e jurídico da América Latina, em que a efetividade dos direitos sociais se mostra falha, se percebe também um processo de erosão democrática em diversos países de toda a região. Em resposta a estes problemas comuns, vivenciado por vários países, é preciso pensar um constitucionalismo que seja transformador.

Neste sentido, o constitucionalismo transformador significa interpretar e aplicar as normas de caráter constitucional de maneira que impulsionem uma alteração social para conseguir determinados objetivos constitucionais. E pensar o direito constitucional na América Latina com a necessária intersecção com o direito internacional passa pela constante aplicação e interpretação da Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH), documento que é um pilar do constitucionalismo transformador latino-americano.

O conteúdo das decisões da Corte IDH, convida as instituições do Sistema Interamericano, e os sistemas jurídicos internos dos países, a participarem deste constitucionalismo transformador na América Latina. Neste sentido, com o passar do tempo, a Corte Interamericana adquiriu um papel fundamental na construção jurisprudencial de proteção aos direitos humanos, abordando os problemas estruturais de toda a região (as debilidades institucionais, a exclusão social, a violência etc.).

Esta jurisprudência configura o Ius Constitucionale Commune latinoamericano (ICCAL), ou seja, um direito comum relacionado aos direitos humanos que tem influência real na vida das pessoas[1].

A denominação ius commune (direito comum) é um conceito para responder as configurações atuais do espaço jurídico de proteção aos direitos humanos, de forma que a jurisprudência que surge da interpretação da Convenção Americana por meio da Corte IDH deve orientar cada juiz em qualquer Estado da comunidade americana.

O Ius Constitucionale Commune compreende as diretrizes constitucionais como democracia, separação de poderes, participação política, controle do poder e, sobretudo, respeito e garantia dos direitos humanos – que a Corte Interamericana de Direitos Humanos desenvolveu ao longo dos anos[2].

No núcleo principal da agenda do ICCAL existem dois elementos, que intentam a resolução de dois problemas no contexto da América Latina, e que objetivam o estabelecimento de uma verdadeira democracia constitucional. O primeiro se refere ao enfrentamento das profundas deficiências relacionadas a debilidade das instituições e que geram inseguridade, impunidade e corrupção.

O segundo tem relação com as condições indignas de vida e que afetam amplos setores da sociedade. A desigualdade pode ter diferentes causas, contudo, se revela grave e profunda, quando setores inteiros da população carecem de condições para se integrar nos sistemas sociais[3].

Apesar da CADH não estabelecer disposições jurídicas mandamentais para fomentar este constitucionalismo transformador, a partir dos anos 1980 com a redemocratização, os países buscaram um consenso social mais amplo, objetivando uma progressiva realização dos direitos sociais e as constituições nacionais se abriram aos tratados internacionais de direitos humanos.

Logo, percebeu-se uma superação na forma da compreensão da soberania estatal. Neste sentido, a Corte IDH, passou a interpretar as disposições normativas da CADH de uma forma evolutiva, conduzindo a um constitucionalismo transformador na América Latina.

A Corte IDH, nos últimos anos, alterou sua jurisprudência sobre a interpretação dada à justiciabilidade dos direitos sociais (artigo 26 da CADH), em que inicialmente eram compreendidos na forma indireta, em que se protegia os direitos sociais na hipótese de haver uma violação prévia a direitos civis ou políticos, para, na sua renovada forma direta, os direitos sociais deverem ser compreendidos como parte efetivamente integrante dos direitos humanos, com as características de interdependência e indivisibilidade, não havendo qualquer tipo de hierarquização entre os mais diversos direitos.

A aplicabilidade direta na proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC) se deu com uma interpretação inovadora do art. 26 da Convenção Americana, pela Corte IDH, a partir do caso Lagos del Campo vs. Peru (2017)[4], em que foi reconhecido o direito a estabilidade laboral do Sr. Alfredo Lagos del Campo por sua demissão arbitrariamente após denunciar uma suposta interferência da empresa empregadora Ceper-Pirelli nas eleições da Comunidade Industrial, uma organização de trabalhadores da qual presidia.

Em outras palavras, o conteúdo da decisão judicial determinou o direito a estabilidade laboral sem que houvesse uma violação conjunta de um direito civil ou político, reconhecendo o caráter autônomo deste direito. O que se contrapõe com o entendimento jurisprudencial anterior da aplicabilidade indireta, que apesar de reconhecer que o desenvolvimento progressivo do art.26 decorre do dever de não regressividade, vinculava o conteúdo das decisões de violação dos DESC a uma prévia violação de direitos civis ou políticos.

Essa evolução jurisprudencial delineada pela Corte IDH, aponta a indissociabilidade entre o fortalecimento da democracia e a proteção dos direitos sociais pois a normatividade internacional latino-americana (ICCLA) realiza a conexão entre a democracia representativa e a proteção dos direitos sociais. Contudo, vislumbra-se que os Estados de cunho social por vezes se afastam dos postulados democráticos. A resposta dada pela Corte IDH é de reafirmar esta relação de complementariedade e interdependência entre o fortalecimento da democracia e a proteção dos direitos sociais.

Essa necessidade de complementação do modelo estatal com elementos sociais se faz sentida pelo desenvolvimento de um Ius Constitucionale Commune na América Latina, de forma que a atuação do Sistema Americano de Proteção aos Direitos Humanos, e a proteção multinível dos direitos fundamentais, fortalece tanto a garantia dos direitos sociais quanto a própria democracia na região.

[1] BOGDANDY, Armin Von. Por un derecho común para América Latina. 1ª Ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2020.

[2] AGUILAR CAVALLO, Gonzalo. ¿Surgimiento de un derecho constitucional común en América? (Parte II). Revista de Derecho del Estado, No. 26, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 2011, p.52.

[3] BOGDANDY, Armin Von. Ius constitutionale commune en América Latina. Aclaración conceptual., en Armin Bogdandy, Mariela Morales, Eduardo Ferrer (eds.), Ius Constitutionale Commune en América Latina. Textos básicos para su comprensión, Instituto de Estudios Constitucionales del Estado de Querétaro, 2017, p.2).

[4] Posteriormente, a fundamentação da aplicabilidade direta foi reiterada em diversos julgados posteriores, a exemplo: Trabajadores Cesados de Petroperú y otros vs. Peru”; “San Miguel Sosa y Otras vs. Venezuela”; “Poblete Vilches y Otros vs. Chile”; “Cuscul Pivaral y Otros vs. Guatemala”; “Muelles Flores vs. Peru”; “Hernández vs. Argentina”; e “Lhaka Honhat vs. Argentina”.

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