Desde o início do governo Lula 3, o debate público no Brasil tem sido fortemente concentrado na necessidade de um maior equilíbrio fiscal. Aparentemente, lideranças políticas, economistas e membros do governo têm apresentado relativo acordo de que algum ajuste deve ser feito.
Mas enquanto um grupo defende a ampliação das receitas, com a correção de tributos ou cobrança de quem paga menos impostos, um segundo aposta que, para organizar as contas, é necessário cortar despesas do orçamento federal.
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O calor das discussões contrasta com o clima do debate sobre a PEC da Transição, proposta por Lula ainda na condição de presidente eleito no fim de 2022. A PEC 32/22 aprovada pelo Congresso Nacional autorizou o novo governo a aumentar em R$ 145 bilhões o teto de gastos no orçamento de 2023 para manter o Bolsa Família, o Auxílio Gás, a Farmácia Popular e outras políticas. Naquele momento, o debate sobre ajuste fiscal passou distante da agenda do Executivo e do Legislativo.
Entre o fim de 2022 e 2025, o cenário mudou. A agenda fiscal ganhou tração. Executivo e Legislativo, além de lideranças com acesso à imprensa, travam uma disputa pública permanente sobre o tema, com cobranças sistemáticas da necessidade de “corte de gastos”, porque há risco de “paralisia” do orçamento em 2027. Pelo lado da receita, o governo é cobrado a não realizar aumento de impostos, porque a “sociedade não aguenta mais”.
O debate atual é um exemplo de como o sistema presidencialista tende a reduzir o papel e a responsabilidade política de outros agentes, como o Legislativo e o Judiciário, no tema ajuste fiscal. Nesse modelo, a centralização do governo na figura do presidente, além das atribuições constitucionais definidas de executar o orçamento, constitui um quadro perfeito de uma espécie de “responsabilização difusa de baixo custo” dos demais poderes.
Embora no agregado seja possível dizer que o Congresso contribui com esta ou aquela decisão, a natureza das decisões coletivas deste poder torna quase impossível responsabilizar politicamente um ou outro parlamentar.
Em um modelo de presidencialismo de coalizão, no qual o chefe do Executivo precisa formar uma ampla base para governar, o cenário fica ainda mais crítico. Desde 2015, o Congresso vem ampliando o volume de emendas parlamentares, passando a ser também, em última instância, um agente contribuinte para as dinâmicas das despesas federais.
Estima-se, por exemplo, que as emendas chegarão a R$ 53 bilhões em 2026 e deverão somar R$ 61,7 bilhões em 2029. Neste ano, o valor destinado a emendas deve ultrapassar a soma dos recursos livres para investimentos de 30 dos 39 ministérios do governo federal.
Essa tendência acentua o precário modelo de responsabilização política no tema do equilíbrio fiscal. Enquanto pode se beneficiar do bônus de direcionar recursos e investimentos, o parlamentar fica desobrigado publicamente do ônus de trabalhar também para o maior equilíbrio fiscal, ou seja, a difícil tarefa de apoiar cortes de gastos em políticas públicas ou mesmo de apoiar eventualmente o aumento de tributos que recomponham as receitas do governo.
O impulso dado pela “responsabilização difusa de baixo custo” é notório quando analisamos o comportamento das votações do Legislativo. Na semana passada, o Congresso derrubou o decreto presidencial que aumentava o IOF de algumas operações, e que, segundo o Ministério da Fazenda, poderia ampliar em R$ 12 bilhões as receitas do Executivo.
Em um espaço de menos de 24 horas, o Legislativo aprovou o aumento do número de deputados para 2027, com o acréscimo de 18 novas cadeiras e um custo anual de R$ 64 milhões. Essa decisão poderá incidir também em um aumento do valor de emendas, já que muito provavelmente o Legislativo não vai aceitar redistribuir os valores atuais com os novos deputados.
Votação da IOF e aumento da Câmara: os perfis dos parlamentares
As duas votações apontam na direção de menos receita e mais gastos, comportamento que contradiz o discurso da necessidade de equilíbrio fiscal, mobilizado pelo chefe da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, senador Davi Alcolumbre (União-AP). A análise dessas duas votações demonstra que o Legislativo brasileiro é formado hoje por quatro perfis de parlamentares quando o assunto é ajuste fiscal.
Para identificar os perfis, foram considerados 440 deputados federais que participaram das votações da derrubada do aumento da IOF e do aumento da Câmara. Dessa forma, foram excluídas as abstenções ou quem faltou a uma das duas votações. Os quatro perfis combinam, portanto, o voto de cada parlamentar no decreto do IOF com o voto no projeto que ampliou o número de deputados.
Perfil dos deputados no debate do ajuste fiscal
Populista fiscal: 44% votaram contra o IOF mas foram a favor do aumento da Câmara dos Deputados. São os campeões da contradição. Enquanto ecoam o discurso anti-impostos, não hesitam em aprovar medidas que aumentam os gastos públicos quando beneficiam seus grupos políticos.
Adepto da austeridade seletiva: 35,4% rejeitaram o IOF e o aumento da Câmara, sugerindo uma compreensão sobre a necessidade do ajuste fiscal e do papel do Legislativo nesse debate.
Fiscalmente expansionista: 11,5% apoiaram o aumento do IOF e também votaram para ampliar o tamanho da Câmara. Esse grupo representa uma outra faceta do problema do ajuste fiscal. Eles acreditam tanto na necessidade de aumentar receitas quanto em expandir a máquina pública.
Fiscalmente responsável: 8,8% dos favoráveis ao IOF votaram também contra o aumento da Câmara. Uma leitura simples indica que esse grupo entende que a sustentabilidade das contas públicas exige tanto a manutenção de receitas essenciais quanto o controle de despesas não apenas do Executivo.
Os partidos “populistas fiscais”
Como essas quatro categorias estão condicionadas a escolhas de natureza econômica, como receitas (aumento da IOF) e gastos (aumento da Câmara), elas escondem nuances políticas.
Por exemplo, o tamanho da base governista da Câmara, que, em tese, deveria votar para manter o aumento da IOF, ou mesmo aspectos regionais que levaram deputados a votarem segundo interesses locais, no caso, pela ampliação do Parlamento, podem influenciar essas dinâmicas? E como esses perfis se distribuem entre governistas e oposicionistas?
A análise por partido indica que Avante, Republicanos, PP, PDT, MDB, União Brasil e Solidariedade são os partidos com a maior proporção de deputados “populistas fiscais”, isto é, votaram contra o aumento da IOF mas foram a favor da ampliação da Câmara. No outro extremo, temos o PSOL e a Rede com 100% dos votos segundo o perfil “fiscalmente responsável”, isto é, votaram a favor do aumento da IOF (mais receita) e contra o aumento da Câmara (menos despesas).
Perfil das bancadas federais no debate do ajuste fiscal
O governo Lula 3, como se sabe, tem uma base parlamentar bastante instável, com partidos ocupando ministérios e cargos e, mesmo assim, votando contra medidas do Executivo. A distribuição dos perfis segundo os grupos governista e oposicionistas mostra o seguinte comportamento.
Os oposicionistas reúnem uma proporção maior do perfil “austeridade seletiva”, com 67%; enquanto os governistas se distribuem entre “populista fiscal”, com 49%, e a participação de deputados de perfil “austeridade fiscal”, “fiscalmente expansionista” e “fiscalmente responsável”.
É claro que essas categorias não conseguem capturar todas as nuances entre governistas e oposicionistas para o caso da IOF. Deputados de oposição, por exemplo, podem se enquadrar mais em um perfil de “austeridade seletiva” simplesmente porque foram mais receptíveis a pressão de grupos econômicos que seriam afetados pelo aumento do IOF, enquanto governistas a favor do aumento do imposto, muitos deles “populistas fiscais”, votaram mais em razão da orientação do governo.
Perfil dos deputados no debate do ajuste fiscal
Quando analisamos os dados segundo as bancadas regionais, vemos que entre aquelas com proporção de populistas fiscais acima de 50%, a maior parte concentra-se nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. A bancada de Alagoas apresenta a maior proporção de populistas fiscais: 89%. Paraíba vem logo em seguida com 82%, seguida do Acre, com 75%.
Pará; Santa Catarina; Amazonas; Mato Grosso; Rio Grande do Norte; Paraná; Ceará; Goiás e Minas Gerais foram os estados beneficiados pelo aumento de 18 novos deputados a partir de 2027. Neste grupo, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Minas não registram maioria de “populista fiscal”.
Em outras palavras, apesar de serem beneficiados com mais cadeiras no Legislativo, essas bancadas votaram de diferentes formas no caso do IOF e do aumento da Câmara dos Deputados.
Perfil das bancadas federais no debate do ajuste fiscal
Em resumo, esta análise é um exercício exploratório das categorias dos perfis identificados, restando ainda mais testes para a sua validação. De todo modo, é uma proposta inicial para a sociedade civil, imprensa e demais instituições refletirem sobre as responsabilidades diretas do Legislativo no debate do ajuste fiscal.
O modelo inaugurado a partir de 2015, quando foi instituída a execução obrigatória de emendas, seguido de um aumento expressivo do valor de emendas destinadas pelos parlamentares, demonstra que é chegada a hora de criarmos mecanismos mais claros de responsabilização política do Congresso, em especial, quando suas lideranças evocam o discurso do equilíbrio fiscal, mas atuam em sentido contrário.
Mais do que isso. O novo modelo tem indicado ainda que o presidencialismo de coalizão, que dava suporte ao Executivo para realizar a agenda das urnas, precisa ser remodelado para incluir o Legislativo, agora detentor de mais poderes, em um processo de responsabilização menos difusa e mais direta.