STJ e crédito de cooperativas em recuperações judiciais: o que muda na prática?

Uma importante decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferida em maio deste ano no Recurso Especial 2.091.441/SP, pode impactar profundamente o rumo das recuperações judiciais no Brasil.

A 3ª Turma do tribunal firmou entendimento no sentido de que créditos oriundos de atos cooperativos — inclusive os representados por cédulas de crédito bancário emitidas por cooperativas de crédito a seus cooperados — não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.

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O julgamento, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, confirma a tese de que tais créditos são extra concursais, ou seja, estão fora do processo coletivo de reestruturação financeira que envolve os demais credores da empresa em recuperação.

Mas o que isso significa na prática? E como essa decisão impacta as cooperativas, os credores e as empresas em dificuldades financeiras? Entenda o caso.

O caso em análise teve origem em uma impugnação de crédito apresentada pela Cooperativa Sicredi Alta Noroeste, que buscava a exclusão de seu crédito da lista de credores de duas empresas em recuperação judicial — C. Marques da Rocha Simon Comércio Ltda. e Rocha & Silva Penápolis Ltda. — por entender que os valores devidos eram fruto de atos cooperativos e, portanto, não deveriam ser submetidos à recuperação judicial.

A alegação da cooperativa foi aceita em primeira instância e mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que reconheceu a natureza cooperativa do crédito. A decisão foi então contestada pelas empresas recuperandas no STJ, sob o argumento de que a operação realizada — representada por uma cédula de crédito bancário — era típica de mercado, com cobrança de juros e prazos similares aos praticados por instituições financeiras comuns. Para as empresas, isso descaracterizaria o crédito como ato cooperativo.

O STJ, no entanto, foi unânime em negar provimento ao recurso, reconhecendo que, mesmo se tratando de operação financeira, o crédito teve origem em um ato cooperativo e está protegido pela regra do §13 do artigo 6º da Lei de Recuperações Judiciais e Falências (Lei 11.101/2005), introduzida pela Lei 14.112/2020.

Nesse sentido, ato cooperativo está definido na Lei das Cooperativas (Lei 5.764/1971), que o caracteriza como qualquer operação realizada entre cooperativas e seus associados, ou entre cooperativas associadas entre si, com o objetivo de alcançar suas finalidades sociais. Em outras palavras, são transações realizadas dentro do espírito mutualista que rege o cooperativismo, sem finalidade de lucro.

No caso das cooperativas de crédito, isso inclui a concessão de empréstimos a seus cooperados. O STJ reconheceu que tais operações fazem parte do objeto social da cooperativa e são, portanto, atos cooperativos por excelência — mesmo quando há cobrança de juros, desde que esses sejam revertidos em benefício dos próprios associados, conforme o modelo mutualista.

Diante disso, o impacto a exclusão dos créditos cooperativos do processo de recuperação judicial tem repercussões profundas.

Primeiro, representa um privilégio significativo às cooperativas, que passam a figurar como credoras “fora da fila” no processo de reestruturação. Enquanto os demais credores — incluindo bancos, fornecedores, trabalhadores e o fisco — precisam negociar seus créditos dentro de um plano aprovado judicialmente e estão sujeitos a descontos, prazos e até perdões, as cooperativas mantêm o direito de cobrar seus créditos integralmente e fora das regras da recuperação.

Segundo, impõe um novo desafio às empresas em recuperação. Ao verem excluídas dívidas com cooperativas do rol das obrigações reestruturáveis, essas empresas perdem margem de manobra para renegociar o passivo de forma global e equilibrada. Em um cenário em que o caixa é escasso, ser compelido a continuar pagando regularmente determinados credores — como as cooperativas — pode inviabilizar o cumprimento do plano aprovado judicialmente com os demais credores.

Além disso, abre um precedente que poderá incentivar credores, inclusive bancos que operam em parceria com cooperativas, a buscar formas de estruturar operações sob a roupagem de ato cooperativo para escapar da recuperação judicial.

Em vista disso, a decisão gerou reações diversas entre operadores do direito, administradores judiciais e representantes do setor produtivo. Se, por um lado, pode haver quem aplauda o reconhecimento da natureza diferenciada do crédito cooperativo, protegendo o princípio do mutualismo e fortalecendo o sistema cooperativista, por outro, há uma clara preocupação com a isonomia entre os credores.

Outro ponto de crítica é o potencial enfraquecimento da função do juízo recuperacional como foro universal da crise, ao se multiplicarem os créditos não sujeitos à recuperação, o que pode esvaziar o poder de reorganização do processo judicial e aumentar a insegurança jurídica.

Com isso, é essencial que as empresas em crise, bem como seus assessores jurídicos e financeiros, estejam atentos à origem e à natureza dos créditos existentes. Saber identificar um ato cooperativo pode fazer toda a diferença na estratégia de reestruturação.

Por fim, a decisão do STJ reafirma que o cooperativismo financeiro é uma realidade jurídica própria, com fundamentos que não podem ser ignorados — mas também ressalta a importância de equilibrar os benefícios concedidos a certos tipos de credores com o objetivo maior da recuperação judicial: viabilizar a preservação da empresa, o pagamento equilibrado dos credores e a manutenção dos empregos e da atividade econômica.

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