Suspensão da FCPA por Trump: riscos e impactos para a integridade corporativa global

Em meados de fevereiro, quando o mundo ainda buscava se acostumar com as novas políticas do recém-inaugurado governo Trump, uma medida surpreendeu os profissionais que atuam com compliance e nas relações entre setor privado e agentes públicos.

Por meio de uma ordem executiva — instrumento equivalente ao nosso decreto presidencial —, o presidente dos Estados Unidos determinou ao procurador-geral uma pausa de 180 dias na aplicação da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), prorrogável por igual período. Durante esse tempo, nenhuma nova investigação ou ação com base na lei poderá ser iniciada pelo Departamento de Justiça (DOJ).

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A FCPA, promulgada em 1977, é a principal legislação anticorrupção dos Estados Unidos e proíbe empresas e cidadãos daquele país, bem como suas subsidiárias e terceiros que atuem em seu nome, de oferecer, prometer ou pagar subornos a agentes públicos estrangeiros com o objetivo de obter ou manter negócios. Além disso, exige que as empresas mantenham controles contábeis internos e livros contábeis precisos, como forma de prevenir e detectar práticas ilícitas.

Trata-se de uma das legislações mais influentes no cenário global de integridade corporativa e compliance anticorrupção. A FCPA inaugurou o tratamento da corrupção transnacional ao ser a primeira legislação no mundo a tipificar como crime o suborno de agentes públicos estrangeiros por empresas nacionais fora de seu território.

A lei representou um divisor de águas no combate à corrupção em escala global, promovendo uma cultura de integridade nas relações comerciais internacionais, influenciando diretamente a criação de normas internacionais e legislações nacionais similares por todo o mundo, como a Convenção Anticorrupção da OCDE, o UK Bribery Act e até mesmo a Lei Anticorrupção brasileira.

Segundo a ordem executiva, o principal motivo para determinar a suspensão foi que “a aplicação excessiva e imprevisível da FCPA contra cidadãos e empresas americanas (…) prejudica ativamente a competitividade econômica americana e, portanto, a segurança nacional”, sendo política do atual governo “promover a segurança econômica e nacional americana, eliminando barreiras excessivas ao comércio americano no exterior”[1].

O argumento, contudo, não encontra respaldo nos números. Desde 2014 a FCPA levou à imposição de quase US$ 25,5 bilhões em sanções, sendo que desse montante aproximadamente US$ 18,4 bilhões foram cobrados de empresas estrangeiras envolvidas em casos fora dos EUA.

Em 2024 as sanções sobre empresas americanas totalizaram cerca de US$ 500 milhões, representando pouco menos de 30% do total de sanções impostas naquele ano[2]. Ou seja, a maior parte da aplicação da FCPA recai sobre empresas de fora dos EUA, o que reforça seu papel de equilíbrio competitivo.

Além disso, é importante lembrar que com a FCPA os EUA contribuíram para a criação de um padrão internacional, o que reduziu a tolerância a práticas ilícitas em diversos países concorrentes. Assim, empresas que operam em conformidade com a FCPA passaram a competir em mercados mais nivelados, com menos distorções causadas por propinas e favorecimentos ilegítimos.

A FCPA ajudou a estabelecer um ambiente de negócios mais justo e previsível, promovendo a concorrência baseada em mérito, qualidade e inovação, e não em corrupção. O cenário mais provável é que a suspensão da FCPA ajudará as empresas estrangeiras que já praticam ou sejam mais propensas a atos de corrupção, criando mais concorrência e riscos para as empresas americanas — efeito contrário ao pretendido pela ordem executiva de Trump.

Mas, controvérsias à parte, qual o real impacto da suspensão do FCPA para as empresas e profissionais que atuam na relação entre o setor privado e agentes governamentais? Seria esse o fim do compliance? A corrupção estaria liberada?

A resposta é simples: não.

Primeiro, porque a FCPA deu origem a diversas leis similares por todo o mundo. Logo, as empresas continuam sujeitas a penalidades em seus países de origem ou nos quais praticarem atos ilícitos, além de sanções por parte de organismos multilaterais com regulamentos anticorrupção próprios, como o Banco Mundial. No Brasil, por exemplo, nos dez primeiros anos de vigência da Lei Anticorrupção, a Controladoria-Geral da União (CGU) aplicou multas que ultrapassaram a marca de R$ 1 bilhão.

Na verdade, as empresas americanas podem observar até mesmo um aumento na fiscalização das autoridades estrangeiras sobre suas operações, como forma de retaliação pelo aumento de tarifas por parte do governo norte-americano.

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Mesmo nos EUA as empresas ainda estariam sujeitas a sanções. A ordem executiva se limita ao DOJ, e não atinge a Securities and Exchange Commission (SEC), agência federal independente responsável por regular os mercados de valores mobiliários.

Embora costumem trabalhar em parceria e, ao contrário do DOJ, a SEC não tenha competência criminal e esta ainda poderia iniciar investigações e ações civis por violações à FCPA. Alguns estados norte-americanos também poderiam aplicar penalidades com base em suas próprias legislações anticorrupção.

Analistas dos EUA também apontam que, independentemente da abordagem do DOJ durante o atual governo, a FCPA continua sendo uma lei em vigor e qualquer violação ainda estará dentro do prazo de prescrição para investigações durante o próximo governo[3]. Ou seja, uma eventual mudança na administração federal poderá colocar no holofote dos órgãos de controle empresas que aproveitaram o ano de “salvo-conduto” da FCPA para praticar irregularidades.

Por fim, há o impacto reputacional. Ao incentivar a transparência, a ética e o fortalecimento de controles internos, a FCPA levou muitas empresas a investirem milhões de dólares em programas de compliance robustos, o que, além de mitigar riscos legais e reputacionais, tornou suas operações mais eficientes e resilientes. Abandonar esses programas seria jogar fora não apenas os investimentos já realizados, mas também a credibilidade conquistada junto a stakeholders, investidores e opinião pública.

A intenção por trás da suspensão da FCPA parece ser mais uma manifestação da política America First, mostrando que o lema será perseguido a qualquer custo, seja ele suborno, corrupção ou uso da força, do que uma efetiva melhora da competitividade das empresas.

Junto com a nova política de tarifas, a pressão sobre países mais fracos, e a busca por fontes de minérios (os novos metais preciosos), o que se observa é algo que pode ser definido como um neomercantilismo. Porém, ao contrário de sua versão original, o protecionismo econômico atual vem combinado com um maior isolacionismo econômico, ao invés da expansão dos mercados.

Portanto, diante desse cenário, a recomendação é: business as usual. Para aqueles profissionais que interagem com agentes governamentais de qualquer país continue seguindo as políticas de compliance recomendadas por sua organização. Se as políticas foram relaxadas, desconfie do comprometimento ético de sua empresa e adote uma conduta condizente com seus valores pessoais.

Os dividendos — financeiros e reputacionais — de uma política de integridade e compliance sólida e consistente são superiores ao longo do tempo quando comparados a incentivos de curto prazo, como parece ser o caso da suspensão da FCPA. Em tempos de incerteza política, a integridade continua sendo a melhor forma de atuar corporativamente junto a governos e perante a sociedade.

[1] https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/02/pausing-foreign-corrupt-practices-act-enforcement-to-further-american-economic-and-national-security/

https://whistleblowersblog.org/foreign-corruption-whistleblowers/data-shows-international-focus-of-fcpa-enforcement/

https://www.whitecase.com/insight-alert/fcpa-freeze-and-refocus-enforcement-becoming-tool-promote-us-economic-foreign-policy

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