O controle judicial da concessão da rodovia do aço e a Doutrina Chenery

No último dia 2 de junho, o Poder Executivo federal editou o Decreto 12.479/2025, declarando a caducidade da concessão da K-Infra Rodovia do Aço S.A., responsável por aproximadamente 200 km da BR-393/RJ – conhecida como rodovia do aço. O governo justificou a medida alegando descumprimentos contratuais e legais por parte da K-Infra.

A caducidade recém declarada é resultado de um embate jurídico e regulatório entre a K-Infra, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Ministério dos Transportes que perdura desde novembro de 2022, quando a agência reguladora aprovou a instauração de processo administrativo de caducidade em face da concessionária, tendo por base um Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR)[1].

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Posteriormente, em setembro de 2024, o ministério negou o pedido de repactuação e otimização do contrato de concessão apresentado pela K-Infra, por meio da Portaria 926/2024, sob a justificativa de que o pedido implicava uma abdicação indevida de multas já inscritas em dívida ativa da União. Com isso, o processo evoluiu para a formalização do decreto de caducidade pelo presidente da República.

Apesar da manifestação técnica e regulatória pela extinção do contrato, a K-Infra permaneceu operando a rodovia do aço até junho de 2025 em decorrência de uma decisão judicial que, em sede de tutela antecipada em caráter antecedente, suspendeu os efeitos da Portaria 926/2024 e do processo de caducidade até o julgamento final da demanda e/ou a realização pelo Ministério dos Transportes da análise da alternativa de otimização do contrato de concessão.

Em sua fundamentação, a 6ª Turma do TRF1 apontou que as penalidades imputadas à K-Infra estavam garantidas por bloqueio judicial e seguro-garantia, além de o suposto descumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com a ANTT não ter sido analisado de maneira definitiva devido a vícios no seu processo administrativo.

Esse cenário revela uma preocupação com a ingerência do Poder Judiciário em decisões regulatórias cuja complexidade exige um maior rigor técnico – o que é precisamente o atributo que justifica a atuação das agências reguladoras.

É nesse contexto que se destaca a Doutrina Chenery, formulada pela Suprema Corte dos Estados Unidos nos casos Chenery I[2] e Chenery II[3], segundo a qual o controle judicial sobre atos administrativos deve se limitar aos fundamentos expressamente invocados pela Administração, vedando a substituição do juízo técnico da agência por interpretações posteriores dos tribunais.

A doutrina reconhece que certos atos administrativos, por envolverem discricionariedade técnica e expertise institucional, não devem ser substituídos por juízos judiciais genéricos, sob pena de violação à separação dos poderes e à lógica do modelo regulatório.

No Brasil, a aplicação desse entendimento já foi reconhecida pelo STJ no âmbito do Agravo Interno na Suspensão de Liminar e de Sentença 2.240/SP[4], que reafirmou a limitação do Judiciário na revisão de decisões administrativas fundadas em critérios técnicos ao negar a suspensão da eficácia do aumento de tarifas de transporte urbano do estado de São Paulo.

Complementarmente, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), após as alterações da Lei 13.655/2018, passou a determinar que as decisões nas esferas administrativa, controladora e judicial considerem as consequências práticas e a realidade do gestor[5], o que corrobora a ideia de respeito à especialidade da função administrativa e impede a anulação irrestrita de atos administrativos pelo Poder Judiciário.

No caso da K-Infra, a 6ª Turma do TRF1, ao sustar os efeitos da portaria e do processo de caducidade, esvaziou o núcleo da atuação regulatória motivada por um relatório de AIR, substituindo, portanto, o juízo técnico da ANTT e do ministério por uma avaliação estritamente jurídica.

A garantia das penalidades imputadas à concessionária e a existência de vícios processuais formais no processo do qual se originou o TAC não afastam o fato de que havia, segundo os órgãos técnicos, falhas estruturais e operacionais graves, incompatíveis com a continuidade da concessão.

Ao interferir preventivamente, sem análise final do mérito e sem deferência à expertise da ANTT, o tribunal comprometeu a racionalidade do modelo regulatório e ignorou o limite legítimo de sua própria atuação institucional. Assim, a decisão da 6ª Turma do TRF1, além de representar uma contrariedade à Doutrina Chenery, configura-se como mais um perigoso precedente de judicialização excessiva de matérias regulatórias.

[1] De acordo com o relatório da Diretoria, de 2018 a 2022, a K-Infra acumulou 391 processos administrativos sancionadores, totalizando R$ 851.749.441,00, além de ter descumprido todos os prazos parciais para correção de falhas na concessão previstos pela Portaria SUROD 118/2021. Atualmente, a dívida atualizada da concessionária pode ultrapassar R$ 1 bilhão.

[2] SEC v. Chenery Corp., 318 U.S. 80 (1943).

[3] SEC v. Chenery Corp., 332 U.S. 194 (1947).

[4] Ag. Int. no Ag. Int. na Suspensão de Liminar e de Sentença 2.240/SP. Órgão: Superior Tribunal de Justiça (Corte Especial). Relatora: Min. Laurita Vaz. Data de Julgamento: 7 de jun. de 2017.

[5] Art. 20, Decreto-Lei 4.657/1942. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Art. 22, Decreto-Lei 4.657/1942.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

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