Entre a integração europeia e o federalismo brasileiro

A coexistência de múltiplas esferas normativas é característica comum ao federalismo brasileiro e ao modelo jurídico-institucional da integração europeia, marcados pela repartição de competências entre diversos entes — sejam eles subnacionais ou supranacionais.

Esse cenário impõe desafios à uniformidade interpretativa e à coerência da aplicação do Direito, especialmente no domínio tributário, marcado pela complexidade normativa e pelas garantias de segurança jurídica e previsibilidade.

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

No Brasil, esses desafios se intensificam com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), instituído pela Emenda Constitucional (EC) 132/2023, cuja arrecadação e fiscalização competirão, de forma simultânea, à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios. Nesse contexto, a gestão compartilhada exigirá coordenação administrativa e o Comitê Gestor centralizará o contencioso administrativo do IBS, concentrando a função de promover a uniformização interpretativa, nos termos do artigo 156-B, I e III da Constituição Federal.

O presente artigo se propõe a analisar criticamente a necessidade da adoção, na realidade brasileira, de mecanismo inspirado no reenvio prejudicial europeu. Ao utilizá-lo como referência institucional, busca-se aperfeiçoar o sistema federativo nacional e promover maior coerência hermenêutica, segurança jurídica e eficiência fiscal.

Desafios à uniformização da interpretação do IBS

A regulamentação do IBS segue em discussão nos PLPs 37 e 108, que preveem a criação de um contencioso administrativo nacional com três instâncias e composição paritária, com objetivo de uniformizar a interpretação legal. As propostas, contudo, ainda enfrentam desafios estruturais relevantes no Brasil.

O primeiro é a resistência política e institucional à criação de um contencioso nacional unificado, a partir da visão de que a redistribuição das competências interpretativas poderia tensionar o pacto federativo e ameaçar a autonomia fiscal dos entes.[1] Ao contrário das experiências europeia e norte-americana, o Brasil ainda carece de cultura consolidada quanto à vinculação dos precedentes administrativos. Nesse contexto, a instituição do órgão uniformizador dependerá de mecanismos que assegurem a força vinculante das decisões.[2]

Outro entrave é a frágil cooperação entre as administrações tributárias federal, distrital, estaduais e municipais, que possuem grandes desigualdades em termos de tecnologia, capacitação de pessoal e padrões de gestão. Ademais, a ausência de filtros adequados de admissibilidade e critérios de relevância poderá levar à sobrecarga da instância superior, convertendo-a em mais um gargalo burocrático.[3]

Por fim, mesmo com a uniformização no âmbito administrativo, o Poder Judiciário permanecerá como última ratio, sendo que a persistência de divergências entre as decisões administrativas e judiciais, somada à cultura litigante dos contribuintes e do fisco, poderá limitar o impacto prático da uniformização promovida pelo contencioso do IBS.

Soma-se a isso a complexa heterogeneidade fiscal e econômica regional, que desafia a aplicação homogênea do Direito, impondo a necessidade de adaptação às especificidades locais.[4]

Reenvio prejudicial: vantagens da adoção de um modelo análogo

O reenvio prejudicial, previsto no artigo 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), permite que os tribunais nacionais europeus submetam ao TJUE questões de interpretação ou validade do direito, antes de proferir decisão de mérito. Trata-se de mecanismo “destituído de caráter contencioso”, que permite aos Estados-membros buscarem uma referência interpretativa sobre a questão prejudicial relacionada ao objeto litigioso.[5]

Sua finalidade é harmonizar a jurisprudência nos 27 Estados-membros e assegurar aplicação una do direito europeu, prevenindo contradições entre os ordenamentos nacionais e a ordem supranacional, sem comprometer a autonomia local.[6]

Basta recordar que os célebres “casos constitucionais” que reconheceram o princípio de primazia, do efeito direto, da interpretação conforme ou da responsabilidade do Estado pela violação do direito da União, resultaram de um conjunto de questões interpretativas “explosivas” colocadas por juízes nacionais.[7]

Ao assegurar que as interpretações vinculantes sejam proferidas por um órgão técnico imparcial, o sistema confere maior previsibilidade aos contribuintes e estabilidade às relações jurídico-tributárias. Em analogia ao papel do TJUE, o órgão centralizador funcionaria como intérprete do Direito Tributário uniforme, promovendo a previsibilidade e fortalecendo a confiança dos administrados e dos entes federativos no sistema.[8]

Tal modelo não exige rupturas institucionais, já que a própria Constituição Federal contempla a possibilidade de vinculação administrativa e judicial a decisões interpretativas (a exemplificar, as súmulas vinculantes do STF e os precedentes obrigatórios previstos no CPC/2015).[9] O contencioso administrativo nacional do IBS pode operar como um núcleo técnico de interpretação qualificada, em conformidade com os princípios da legalidade, da eficiência e da segurança jurídica.

Por fim, a existência de um órgão uniformizador vinculante pode favorecer o diálogo entre as esferas administrativa e judicial, tal como ocorre na Europa. Decisões administrativas bem fundamentadas e tecnicamente orientadas têm potencial de influenciar positivamente a esfera judicial, mitigando tensões entre as instâncias decisórias e promovendo a construção de uma jurisprudência integradora.[10]

Considerações finais

A experiência comunitária europeia mostra que a centralização interpretativa não implica supressão da autonomia jurisdicional, mas promove a construção de uma jurisprudência coesa, sobretudo em temas técnicos e de repercussão nacional. Essa aproximação teórica, portanto, não implica importação acrítica de modelos estrangeiros, mas sim a adaptação funcional para desafios constitucionais e administrativos brasileiros.

A concentração da interpretação de normas tributárias comuns em um órgão técnico e imparcial, à luz da experiência europeia, tem o potencial de representar um avanço institucional significativo para a realização de um federalismo mais eficaz, cooperativo e racional.

[1] TORRES, Heleno Taveira. Sistema tributário brasileiro: análise crítica e propostas de reforma. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

[2] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2024.

[3] UROPEAN COURT OF JUSTICE. Case 283/81, CILFIT v. Ministry of Health, Judgment of 6 October 1982. Disponível em: < https://eur-lex.europa.eu >. Acesso em: 28 maio 2025.

[4] AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 27. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022.

[5] SALDANHA, J. L. Cooperação jurisdicional: reenvio prejudicial – mecanismo processual a serviço do direito comunitário: perspectiva para a adoção no Mercosul. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2001. p. 34.

[6] SCHÜTZE, Robert. European Union law. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. p. 259.

[7] SCHEINGOLD, Stuart. “The Law in Political Integration. The Evolution and Integrative Implications of Regional Legal Processes in the European Union”, Occasional Papers in International Affairs, 27, 1971. p. 22.

[8] CRAIG, Paul; DE BÚRCA, Gráinne. EU Law: Text, Cases, and Materials. 7. ed. Oxford: Oxford University Press, 2020. pp. 476–489.

[9] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 20. ed. Salvador: JusPodivm, 2023. pp. 409–421.

[10] TRIDIMAS, Takis. The General Principles of EU Law. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2006. pp. 451–460.

Generated by Feedzy