No primeiro semestre de 2025, o Banco Central divulgou sua agenda regulatória para o biênio 2025-2026, abordando questões fundamentais, como estabilidade financeira, modernização tecnológica e a promoção da concorrência. Entre os temas priorizados estão a regulamentação das Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (PSAVs), do modelo de Banking-as-a-Service (BaaS) e o avanço nos estudos sobre tokenização de ativos.
Essas propostas, submetidas a consultas públicas em 2024 – CPs 109, 110 e 111 sobre ativos virtuais e CP 108 sobre BaaS –, estão entre as mais relevantes do ponto de vista estrutural e devem ser objeto de regulamentação definitiva a partir do segundo semestre de 2025.
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PSAVs e autocustódia: regulação em construção
A proposta é inseri-las no arcabouço regulatório por meio de um regime de autorização, supervisão e obrigações prudenciais específicas. O modelo proposto inclui exigências de capital mínimo, segregação de recursos, governança corporativa e estruturas de compliance, alinhando-se a tendências internacionais como o MiCA europeu e os debates em curso nos Estados Unidos.
Um dos pontos mais controversos é a vedação à transferência de ativos para carteiras de autocustódia, tanto de titularidade do próprio usuário brasileiro quanto de contrapartes no exterior. A medida suscita críticas técnicas e jurídicas: de um lado, pela dificuldade operacional em identificar automaticamente a natureza da carteira; de outro, por restringir direitos relacionados à propriedade privada e à livre circulação de ativos digitais.
Esse debate ganha ainda mais relevância com o recente aumento da alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre operações de câmbio e remessas internacionais. O encarecimento das transferências tradicionais tem levado usuários a buscarem alternativas mais eficientes, como stablecoins. Limitar o uso de autocustódia, nesse contexto, pode reduzir o acesso a essas soluções e afetar a competitividade das PSAVs nacionais frente a plataformas globais.
Como alternativa à vedação total, setores do mercado propõem modelos intermediários, como declaração do usuário sobre o destino dos ativos, limites proporcionais de transferência e medidas de monitoramento graduado. A CP 111, que trata do uso de ativos virtuais em operações cambiais, complementa esse cenário ao sugerir maior controle sobre transações internacionais com criptoativos e o relacionamento com prestadores estrangeiros.
Tokenização: o desafio da transparência sem vigilância excessiva
É um dos temas mais promissores e complexos da agenda regulatória. O BC tem manifestado interesse em regular os processos de emissão, escrituração e negociação de ativos representados digitalmente, como recebíveis, cotas de fundos, precatórios e bens imóveis.
Esse movimento reflete a compreensão de que a tokenização pode aumentar a liquidez, reduzir custos de intermediação e democratizar o acesso a investimentos. No entanto, ao se inserir dentro de registros centralizados e integrados a sistemas públicos de pagamentos e identificação digital, também cresce o risco de concentração informacional e vigilância excessiva por parte do Estado.
A rastreabilidade absoluta de transações tokenizadas, embora benéfica do ponto de vista burocrático, fiscal e de prevenção à lavagem de dinheiro, pode comprometer princípios como a autonomia financeira e a proteção de dados. Por isso, espera-se que a regulação seja formulada em diálogo com a sociedade, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e outras autoridades, assegurando coerência normativa e respeito aos direitos individuais.
BaaS: regulação para um mercado em expansão
A proposta de regulação do modelo Banking-as-a-Service (BaaS), objeto da CP 108, visa disciplinar as relações entre instituições financeiras e empresas não financeiras que ofertam produtos bancários sob sua marca. Esse modelo tem se expandido com rapidez, permitindo que aplicativos, marketplaces e carteiras digitais ofereçam contas, crédito e outros serviços diretamente ao consumidor.
A essência do modelo BaaS é a descentralização da interface com o cliente final, mantendo a infraestrutura bancária (conta, liquidação e compliance) sob controle da instituição autorizada. Esse modelo traz ganhos de escala e inclusão, mas também desafios jurídicos importantes quanto à atribuição de responsabilidade, qualidade da informação prestada ao consumidor e supervisão indireta de canais externos.
O BC propõe regras claras de responsabilidade, exigindo contratos formais, transparência na comunicação com o cliente e mecanismos de governança e cibersegurança. A proposta também atribui responsabilidade solidária por falhas operacionais, buscando evitar a diluição dos deveres de conduta. O objetivo é permitir a expansão do modelo com segurança jurídica e estabilidade operacional.
Outras frentes
Além dos temas destacados, a agenda do Banco Central contempla ainda outras frentes que merecem acompanhamento:
Open Finance: melhorias operacionais no ecossistema, expansão de serviços e desenvolvimento de funcionalidades voltadas a crédito, portabilidade e atendimento a empresas;
Pix: integração com a tecnologia Near Field Communication (NFC) no Pix por aproximação, crédito colateralizado com Pix Garantido e Pix Parcelado, e reforço no MED para combate a fraudes; e
Inteligência artificial: estudos sobre riscos e impactos do uso da IA em atividades financeiras, com possível elaboração de diretrizes sobre ética, segurança e governança de algoritmos.
O que esperar?
A agenda regulatória do BC para 2025/2026 não se limita a acompanhar a transformação do sistema financeiro — ela busca moldá-la. A regulação das PSAVs, o avanço sobre a tokenização e a disciplina do modelo BaaS representam movimentos estruturantes, com potencial de redefinir os limites da atividade financeira tradicional e as fronteiras da supervisão estatal.
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Esse protagonismo, conduzido por um regulador que se destaca pela qualidade técnica e capacidade de antecipação, exige também salvaguardas institucionais: é essencial calibrar a proteção do sistema com o respeito aos direitos individuais, como a liberdade de uso de ativos digitais, a autodeterminação informacional e a livre iniciativa. Questões como a vedação à autocustódia, a possível sobreposição de competências regulatórias e o risco de ampliar a vigilância estatal precisam ser debatidas com maturidade e proporcionalidade.
Nesse cenário, o desafio não está apenas em “regular o novo”, mas em garantir que, por um lado, esse novo continue sendo viável, inclusivo e competitivo e, por outro, seja seguro e confiável. O futuro do sistema financeiro digital e tokenizado, aberto e interoperável dependerá não só da tecnologia, mas da capacidade institucional de construir normas claras, responsáveis e aderentes aos princípios constitucionais.
Nesse sentido, espera-se que o Banco Central reafirme seu papel como referência institucional, demonstrando preparo técnico e sensibilidade para conduzir os avanços necessários à modernização do Sistema Financeiro Nacional (SFN), com equilíbrio, escuta ativa da sociedade e atenção aos impactos práticos de cada medida.