A pensão pelo zika vírus e a proibição de o Congresso rejeitar MPs

Entre 2015 e 2016, cerca de 2.000 bebês nasceram com microcefalia, provocada por infecção pelo zika vírus durante a gestação. Para lidar com o problema à saúde pública causado pela presença do mosquito transmissor do vírus da dengue, da chikungunya e da zika, a então presidente da República editou a MP 712/2016, convertida na Lei 13.301/2016, dispondo sobre a adoção de diversas medidas de vigilância em saúde para lidar com as doenças causadas pelos referidos vírus.

No que interessa à coluna de hoje, no artigo 18 da lei, acrescentado por emenda parlamentar, foi previsto um BPC temporário (até 3 anos) para as crianças com deficiência decorrente das doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.

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Alguns anos depois, veio a MP 894/2019, convertida na Lei 13.985/2020, que instituiu pensão especial vitalícia destinada a crianças com síndrome congênita do zika vírus, nascidas entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2019. O valor da pensão especial era de um salário mínimo, tendo-se estabelecido que não poderia ser acumulada com indenizações pagas pela União em razão de decisão judicial sobre os mesmos fatos ou com o BPC de que trata o artigo 20 da Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993.

Ocorre que, ainda em 2015, havia sido apresentado o PL 3974/2015, de autoria da então deputada e hoje senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), aprovado na Câmara, emendado no Senado e, depois, aprovado novamente na Câmara dos Deputados como PL 6064/2023, reconhecendo o direito à indenização por dano moral (no valor de R$ 50 mil) em razão da omissão do Estado em não ter atuado no extermínio do mosquito transmissor e a concessão de pensão especial, mensal e vitalícia em valor equivalente ao maior salário de benefício (ou seja, o teto) do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), cujo valor atual é R$ 8.157,41.

A aprovação desse PL no dia 4 de dezembro de 2024 veio quase dez anos após a epidemia provocada pelo vírus entre 2015 e 2016. Entre outras novidades legislativas do PL 6064, está a permissão de que a pensão especial seja cumulada com os rendimentos especificados no artigo 2º, § 4º. O referido PL ainda aumentou o tempo da licença-maternidade e do salário-maternidade das mães de crianças com deficiência decorrente de síndrome congênita associada à infecção pelo vírus da zika.

Entretanto, o presidente da República vetou totalmente o PL 6064, por contrariedade ao interesse público e por inconstitucionalidade, conforme a Mensagem 39/2025, apresentando, em síntese, as seguintes razões:

inconstitucionalidade por violação ao artigo 113 do ADCT e ao artigo 167, § 7º, da CF, pelos quais se exige que a criação ou alteração de despesa obrigatória ou renúncia de receita sejam antecedidas da apresentação de estimativa do impacto orçamentário-financeiro correspondente e da previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou da previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, e violação ao artigo 195, § 5º, da CF (princípio da precedência da fonte de custeio);
que houve a criação de despesa obrigatória de caráter continuado, a instituição de benefício tributário e a ampliação de benefício da seguridade social sem a devida estimativa de impacto orçamentário e financeiro, sem a identificação da fonte de custeio, sem a indicação de medida de compensação e sem a fixação de cláusula de vigência para o benefício tributário, em contrariedade aos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF, e aos artigos 129, 132 e 139 da Lei 15.080/2024 (LDO de 2025); e
que a dispensa de reavaliação periódica dos beneficiários diverge da abordagem biopsicossocial da deficiência, contraria a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e cria tratamento não isonômico em relação às demais pessoas com deficiência.

Não se mencionou entre as razões do veto presidencial o receio de incorrer em crime de responsabilidade. É de se observar também – embora isso tampouco conste das razões do veto – que a proposição não limitou os beneficiários aos nascidos dentro de um determinado intervalo de tempo, tampouco vedou a cumulação da pensão especial com outros apoios financeiros.

No mesmo dia do veto total, contraditoriamente, o presidente editou a MP 1.287/2025, instituindo o apoio financeiro à pessoa com deficiência decorrente de síndrome congênita associada à infecção pelo vírus da zika, desta vez no valor de R$ 60 mil, em parcela única, sem direito à acumulação com qualquer indenização da mesma natureza concedida por decisão judicial, e estabelecendo que sua concessão ficaria sujeita à “disponibilidade orçamentária e financeira” (artigo 6º, parágrafo único), e ficaria restrito ao exercício de 2025 (artigo 7º). A referida MP ainda condicionava o benefício à constatação da deficiência e da relação entre a síndrome congênita e a contaminação da genitora pelo vírus da zika durante a gestação (artigo 3º).

Na exposição de motivos, nada se mencionou quanto à MP ser uma espécie de “compensação” pelo veto ao PL 6064. Nesse documento, estimou-se um impacto de R$ 69,9 milhões (limitado ao ano de 2025, já que o benefício seria em parcela única), a ser absorvido pela dotação já alocada ao Ministério da Previdência Social (MPS), programação orçamentária no âmbito da ação 0536 (Benefícios de Legislação Especial), plano orçamentário 0081 – BPE – Hanseníase.

Como se vê, embora tenha corrigido alguns dos problemas do PL 6064 vetado, a MP 1.287/2025 restringiu excessivamente os critérios e pareceu ter nascido já com caráter eminentemente simbólico (ou seja, para não ter efetividade).

Inclusive, não custa recordar que, em situações semelhantes – quando a lei prevê a condição de “disponibilidade orçamentária e financeira” para o pagamento, o STF já decidiu que é isso mesmo: por exemplo, na ADO 53-AgR, restou assentado que não existe direito subjetivo ao pagamento à luz de um novo patamar do teto constitucional, porquanto esse tipo de majoração depende de análise orçamentária, de responsabilidade fiscal e prévia dotação orçamentária. O entendimento vem sendo replicado em vários outros julgados, por exemplo, AO 2.660-AgR, ARE 1275694 AgR-segundo, entre outros.

Seja como for, a substituição do PL pela MP teve repercussão negativa.

Pois bem. Esse foi o cenário da impetração do MS 20.497 (em segredo de justiça), por N. S. S., menor impúbere representado por sua genitora, contra os atos omissivos do presidente da República e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), consubstanciados na ausência de regulamentação e de operacionalização da referida MP 1.287/2025, notadamente quanto à não disponibilização de canal administrativo apto à recepção dos requerimentos para solicitação do benefício.

Nesse contexto, o pedido liminar foi para que se determinasse ao INSS a criação e disponibilização de plataforma administrativa para o requerimento previsto na MP 1.287/2025 e a relação dos documentos exigidos. Quanto ao periculum in mora, argumentou-se que a medida possui vigência restrita ao exercício de 2025 e, caso não convertida em lei no prazo constitucional (até o dia 2 de junho), expiraria o direito. A título de fumus boni iuris, justificou-se a violação aos direitos fundamentais à saúde, à dignidade da pessoa humana e à proteção integral da criança, previstos nos artigos 6º e 196 da CF.

No último dia 16 de maio, a medida cautelar foi deferida pelo relator, o ministro Flávio Dino, para garantir o direito ao benefício criado pela MP 1.287/2025 “mesmo na eventualidade de perda de vigência do citado ato normativo”, ou seja, independentemente de sua conversão em lei pelo Congresso Nacional. Não foi disponibilizado o inteiro teor dessa decisão, esse trecho consta o extrato da página de tramitação.

Para fundamentar a decisão, considerou o respeito à segurança jurídica das famílias beneficiárias, a força do princípio da predominância do melhor interesse das crianças e dos adolescentes (artigo 227 da CF) e a estatura constitucional dos direitos das pessoas com deficiência (Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto 6.949/2009).

Ainda de acordo com a decisão, “em qualquer hipótese, o patamar de direitos estabelecido pela Medida Provisória, observados os requisitos nela previstos, estará assegurado à parte autora e, por força normativa inerente à medida provisória, a todas as crianças em idêntica situação”. Ou seja, foram conferidos efeitos erga omnes ao mandado de segurança impetrado em caráter individual.

Ao mesmo tempo, desconsideradas as previsões constitucionais do artigo 62 da CF, notadamente as competências exclusivas do Congresso Nacional para converter a medida provisória em lei e para disciplinar, as relações jurídicas delas decorrentes por decreto legislativo (ou no próprio projeto de lei de conversação).

A decisão monocrática foi submetida a referendo e foi acompanhada pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Edson Fachin e Gilmar Mendes. O ministro Nunes Marques apresentou um voto vogal em que acompanhou o relator com ressalvas, condicionando o direito pleiteado à conversão da MP em lei, por deliberação do Congresso Nacional.

Já o ministro Zanin abriu a divergência registrando que não houve omissão imputável ao presidente da República, mas, sim, simplesmente às autoridades administrativas, as quais não compõem o rol do artigo 102, inciso I, alínea d, da CF; portanto, não haveria competência do STF para processar e julgar o mandado de segurança.

Além disso, o ministro Zanin registrou a perda superveniente de objeto, tendo em vista as informações fáticas de que a regulamentação almejada veio com a edição da Portaria Conjunta MPS/MS/INSS 53, de 19 de maio de 2025. Dessa forma, votou para não referendar a medida cautelar, no que foi acompanhado integralmente pelo ministro Fux e, com ressalvas, pelos ministros André Mendonça e Luís Roberto Barroso. Esses dois últimos concordaram apenas quanto à perda superveniente de objeto, mas não quanto à incompetência do STF.

A MP 1.287/2025 de fato acabou caducando no dia 2 de junho, mas, com a liminar do MS 20.497 dada (e referendada), a decisão do Congresso em não aprovar a MP não teve qualquer efeito.

Pelo que já se expôs até aqui, é incontestável que a deficiência decorrente de síndrome congênita causada pela infecção da genitora pelo vírus da zika durante a gestação é uma questão delicada e não se discute a sensibilidade e a boa intenção do relator para alcançar uma solução.

As críticas que se fazem na sequência são de forma, não de conteúdo, e quanto a três aspectos:

a degradação da medida provisória como legislação excepcional;
a distorção constitucional que induz a ultratividade das medidas provisórias, mesmo quando não convertidas em lei; e
o controle judicial que implica bypass do Congresso Nacional e estabelece uma competência universal do STF para processar e julgar todos os casos envolvendo medidas provisórias que necessitem de providências administrativas para sua implementação.

Nesse sentido, em primeiro lugar, observa-se que a MP 1.287/2025, e as anteriores que versaram sobre o tema, revelam a deterioração dos requisitos constitucionais cumulativos de relevância e urgência para a edição de medidas provisórias. No Brasil, a atuação legislativa do presidente da República, em lugar de ser excepcional, restou absolutamente trivial e, pior, até mesmo preferida, em detrimento da legislação aprovada pelo Congresso Nacional. Já não se exige a urgência como conditio sine qua non para discutir o assunto via uma MP.

Em segundo citar, é preciso insistir que essa banalização da atuação normativa monocrática do presidente da República – que per se já é ruim – fica pior quando se analisa mais detidamente o desenho do artigo 62 da CF, e sobretudo a prática no sentido de que as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a vigência da medida provisória tendem a conservar-se regidos por ela (artigos 62, § 11, da CF), já que dificilmente o Congresso Nacional edita o decreto legislativo previsto no artigo 62, § 3º, da CF.

Na prática, essa disciplina confere uma espécie de ultratividade às medidas provisórias e, com isso, o incentivo para o presidente se valha desse instrumento para alcançar seus objetivos mesmo nas situações em que o Congresso Nacional não as converta em lei, seja por rejeição expressa, seja por decurso do prazo in albis.

Como muito bem explicado por Cesar Rodrigues Van Der Laan aqui, a taxa de sucesso (leia-se, de aprovação) é ilusória para indicar as inúmeras situações em que o Congresso Nacional, ao simplesmente permanecer em silêncio e deixar a medida provisória caducar, acaba consentindo com o presidente da República.

Daí que – já em terceiro lugar – essa distorção constitucional que se comenta é elevada à enésima potência quando vem do Poder Judiciário a decisão de “bypassar” o Congresso Nacional, praticamente proibindo que este se manifestasse contrariamente à referida MP 1.287/2025, independentemente das razões que as Casas Legislativas pudessem ter apresentado.

O ponto é relevante porque, como se acaba de comentar, a decisão sobre a MP 1.287/2025 se dá dentro de um contexto que parece não ter sido levado em consideração na medida cautelar do MS 20.497. Como explicado, a MP era muito mais restritiva do que o PL 6064 aprovado pelo Congresso e vetado integralmente pelo presidente da República.

Não à toa, no último dia 17 de junho, o Congresso Nacional acabou rejeitando o veto presidencial ao referido PL 6064, com 520 votos e apenas 2 contrários – dos deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Luiz Carlos Busato (União-RS), que justificaram ter preenchido a cédula de votação de forma incorreta.

Na sessão, os parlamentares justificaram a medida como meio para “reparar o erro do governo”, como “justiça”, para “garantir tratamentos, alimentação especial, remédios, terapias, equipamentos e tudo o que essas crianças precisam todos os dias”, “cobrir os custos com fraldas, remédios e cadeiras apropriadas”.

Ocorre que, do ponto de vista estritamente técnico, a derrubada do veto presidencial pelo Congresso não convalida eventuais inconstitucionalidades da proposição legislativa. A rigor, as razões do veto presidencial ao PL 6064 subsistem: uma despesa obrigatória de caráter continuado foi criada sem a estimativa do impacto orçamentário-financeiro e sem a fonte de custeio correspondente.

Neste caso, será interessante observar como o STF vai lidar com a questão do alegado descumprimento do art. 113 do ADCT, se vai manter o padrão decisório de casos como a ADI 7633 (sobre a desoneração da folha de pagamentos). Já há notícias de que a AGU vai acionar a Corte para viabilizar os recursos financeiros. Provavelmente a coluna voltará a esse tema.

Por hoje, a lição que se tira do caso é a de que a decisão tomada no MS 20.497 foi supérflua ante o desfecho do PL 6064 por obra do Congresso Nacional, mas criou um precedente perigosíssimo, porque pretendeu tornar o Legislativo desnecessário. Menos mal que este último conseguiu fazer valer suas prerrogativas.

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