A delação vale, a defesa, não

O advogado é a única profissão privada expressamente mencionada pela Constituição Federal como indispensável à administração da justiça. Não por acaso: é ele quem garante o direito de defesa. Nesse papel, pode e deve ser combativo. Está, inclusive, autorizado a conduzir investigações defensivas, nos termos de resoluções da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O pleno exercício dessa função é mais do que essencial: é um termômetro da democracia. Quanto mais direito de defesa, mais democracia.

Nesse contexto, a decisão do ministro Alexandre de Moraes que determinou a investigação do advogado Luiz Eduardo Kuntz por suposta obstrução da justiça e, em paralelo, a prisão de Marcelo Câmara com base em diálogos sobre a delação de Mauro Cid é um ataque direto a essa garantia constitucional.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

Segundo a própria decisão, quem iniciou o contato foi o delator Mauro Cid, por meio de perfil anônimo em rede social. O teor do diálogo, agora revelado, limita-se à tentativa de compreender como se deu a delação, especialmente no que diz respeito à sua voluntariedade.

Kuntz agiu como se espera de um defensor que representa alguém diretamente atingido por uma colaboração. Buscou informações, avaliou contradições, questionou os bastidores de um acordo que sustenta a acusação. Nada além disso.

Não houve ameaça. Não houve constrangimento. Não houve coação. Houve diligência técnica defensiva para aferir se o acordo de colaboração de Mauro Cid foi firmado sob coação. E mais: a decisão reconhece que o advogado agiu munido de procuração e em benefício direto do cliente. Nenhuma vantagem indevida. Apenas defesa.

Ainda assim, recai sobre ele a pecha de obstrução. Mesmo sem qualquer demonstração de que tenha tentado frustrar investigações. O que se vê é a criminalização da própria atividade defensiva, por ter ido além do protocolo e ousado confrontar a narrativa oficial. Qual é, afinal, o papel de um advogado em um caso com colaboração premiada? Aceitar passivamente o conteúdo da delação ou verificar se ela resiste à luz?

A realidade é incômoda: abraça-se o processo penal negocial sem rever os pressupostos que ele exige quanto à atuação defensiva. Pretende-se aplicar o modelo, mas sem as garantias estruturais que o tornam legítimo. Querem o acordo, mas recusam o contraditório. Querem a eficiência, mas dispensam a igualdade das partes no processo.

Mais curioso ainda é que o ministro não tenha se incomodado com a conduta do próprio delator. Foi Mauro Cid quem iniciou e participou ativamente das conversas, chegando a relatar momentos em que se sentiu coagido durante o processo de delação. Se o ministro considera autêntico o conteúdo dessas mensagens (e o suficiente para investigar o advogado e prender o cliente) por que não cogitar a rescisão da colaboração?

“Pau que dá em Chico precisa dar em Francisco.” Se há descumprimento, ele parte do delator, não da defesa.

E o conteúdo do diálogo, se verdadeiro, enfraquece a acusação, não a reforça. O que se vê ali é um delator relatando tentativas de direcionamento, hesitação em adotar a narrativa desejada pela investigação e cuidado deliberado para não usar a palavra “golpe”. A defesa de Marcelo Câmara não manipulou fatos nem distorceu versões. Apenas documentou o que o próprio delator disse.

No caso de Marcelo Câmara, a situação se agrava. A decisão presume que ele teria violado medidas cautelares por meio de terceiros e mantido contato com outros investigados. Mas quem conduziu todo o diálogo foi seu advogado, em atuação formalizada e documentada. Não há um único ato de Marcelo que indique comando, indução ou participação direta. Ainda assim, a responsabilização é imposta de forma automática, como se o simples resultado da conversa bastasse para imputar-lhe violação.

Tudo isso é escrito em nome do direito de defesa. Função que exerço diariamente com ímpeto e que espero que continue sendo respeitada. A OAB de São Paulo acaba de escalar os competentes advogados Alberto Zacharias Toron e Renato Martins para defender as prerrogativas profissionais de Luiz Eduardo Kuntz. O alento é saber que a defesa de uma classe está em boas mãos.

Generated by Feedzy