PEC 37 e o avanço indevido do poder de polícia

A recente aprovação da PEC 37/2022 pelo Senado, que incorpora guardas municipais e agentes de trânsito ao rol dos órgãos de segurança pública, representa uma afronta à sistematicidade e coerência do arcabouço constitucional brasileiro. Tal medida, ainda que disfarçada de resposta à legítima preocupação social com a violência urbana, não se justifica dentro de um modelo republicano e eficiente de segurança pública.

A Constituição Federal, em seu artigo 144, estabelece com clareza os limites e as competências dos órgãos de segurança pública. A inserção de novos atores nesse sistema, sem a devida reestruturação legal e institucional, apenas aprofunda a desorganização já existente, abrindo margem para sobreposição de funções, conflitos de competência e insegurança jurídica.

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A antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública e do Mestrado de Justiça e Segurança Pública da UFF, tem alertado para os riscos de uma ampliação desordenada dos agentes que compõem o sistema de segurança pública sem a definição clara de competências exclusivas e partilhadas entre os entes federativos.

A proposta, longe de solucionar o problema da criminalidade, contribui para a pulverização do poder de polícia e o aumento do risco de abusos e arbitrariedades, especialmente quando exercido por agentes sem treinamento adequado.

A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, também chama a atenção para o caráter corporativista do debate. Segundo ela, “todo mundo quer ser polícia” por conta do acesso ao Fundo Nacional de Segurança Pública e do prestígio institucional que a função carrega, mesmo que sem a devida capacitação técnica.

Além disso, é inegável o poder de pressão que tais corporações exercem sobre os Poderes Executivos nos três níveis da federação, pela concessão de um número maior de benefícios salariais. Esse tipo de motivação, longe de atender ao interesse público, revela uma lógica de aparelhamento do Estado por categorias profissionais, muitas vezes, alheias às exigências do trabalho policial.

O Supremo Tribunal Federal decidiu na ADPF 995 que aguarda municipal integra o sistema de segurança pública, sem exercer funções ostensivas típicas das Polícias Militares, nem as investigações próprias da Polícia Civil. Além disso, é importante destacar o papel do controle externo na atuação das polícias, como contrapartida ao exercício do monopólio estatal da violência – que, ainda assim não coíbe eventuais abusos e equívocos.

Ao permitir que agentes de trânsito exerçam policiamento ostensivo, como sugerido pelo relator da PEC, senador Efraim Filho (União-PB), o Congresso não apenas desvirtua o papel originalmente atribuído a esses profissionais — que se limitava à organização e fiscalização do tráfego —, mas também banaliza o exercício de atividades de segurança pública, um dos instrumentos mais sensíveis do Estado Democrático de Direito.

A consequência direta é o aumento da probabilidade de erros operacionais, uso desproporcional da força e violações de direitos fundamentais. O precedente que se abre é grave. Outras categorias profissionais poderão pleitear inclusão no sistema de segurança pública, não com base em critérios técnicos ou jurídicos, mas por pressão política e interesses financeiros. Isso compromete a unidade do sistema, fragiliza a coordenação entre os órgãos e agrava a crise de governança na área.

Diante desse cenário, é imperativo que o debate sobre segurança pública seja conduzido com seriedade, responsabilidade e base técnica. A ampliação do sistema de segurança não pode ser guiada por pressões corporativistas ou por soluções legislativas apressadas que ignoram a complexidade das funções policiais.

A PEC 37, em vez de enfrentar os verdadeiros desafios da segurança — como o fortalecimento das instituições policiais, o combate ao crime organizado e a integração entre os entes federativos —, opta por uma via que pode resultar em desorganização institucional e aumento de conflitos de competência. O Brasil precisa de uma reforma profunda e planejada, não de remendos constitucionais que, embora populares, comprometem a efetividade e a legitimidade das políticas públicas de segurança.

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