Helio de La Peña é um conhecido humorista. Nos inigualáveis tempos de “Casseta & Planeta”, compunha aquele escrachado grupo que fez sucesso dentro e fora das telas. Depois, seguiu sua admirável carreira, sendo conhecido e querido por todos.
Quando Helio de La Peña surgiu na tela da GloboNews no dia 4 de junho deste ano, o assunto era a condenação do humorista Léo Lins ocorrida no dia anterior. Léo Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão, em regime inicial fechado, mais indenização e multa de aproximadamente R$ 1,7 milhão. A dureza da pena se deveu ao entendimento judicial de que Lins foi racista e preconceituoso em seus shows de stand up, fazendo pilhéria das desgraças de grupos vulneráveis. Foram aplicadas leis que criminalizam o racismo e a discriminação contra pessoas em razão de sua deficiência.
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Helio de La Peña é preto. Contraintuitivamente, saiu em defesa de Lins. Apresentou uma visão madura o suficiente para sustentar que Lins, no palco, fazia uma personagem, cujas falas eram dirigidas a um público cativo – que já sabia o que encontraria – em um ambiente controlado – um teatro.
Disse mais, que ninguém saía do show de Lins com ódio a pretos ou pessoas com deficiência e foi além, dizendo que Lins é um sujeito muito amável que, inclusive, ajuda pessoas trans. Depois, na rede, uma profusão de humoristas defendeu Lins: Mauricio Meirelles, Antonio Tabet, Oscar Filho, Danilo Gentilli, Renato Albani, Victor Sarro. Todos estes, brancos. Mas não De La Peña.
Nunca ouvi a voz de Léo Lins, mas já não gosto. Acho piadas com minorias um humor banal, fácil e que carrega o preconceito de eras da sociedade brasileira. Mas gosto de pensar como gente bem mais inteligente do que eu, e apoio-me em Ronald Dworkin, quando, em obra clássica e discutindo os limites da cobertura da cláusula constitucional de liberdade de expressão sobre a pornografia, afirma que ele, Dworkin, não gosta de pornografia. Acha pornografia grotesca e uma afronta à dignidade das mulheres. Mas – completa o filósofo – o que ele acha não pode fomentar a proibição de toda e qualquer pornografia.
Liberdade de expressão não é sobre o que se gosta ou não se gosta. Liberdade de expressão, como aduz Anthony Lewis, serve para proteger as ideias que odiamos. Proteger o que concordamos e defender isso até o fim é fácil; duro, mesmo, é proteger as ideias que odiamos.
O racismo é odioso, pernicioso e uma vergonha, e deve, sim, ser criminalizado. Qualquer espécie de preconceito revela o caráter mais grosseiro e vil do ser humano, que, em geral, tem pouca tolerância com quem é diferente. Menino bom é menino que não é neurodivergente; se for neurodivergente, tem que se dar um jeito de retirá-lo da escola.
Não fossem as leis que criminalizam o racismo e o preconceito e que incluem a pessoa com deficiência e neurodivergente em sala de aula, não há dúvida que estaríamos perdidos. O cabedal legislativo de proteção das minorias revela o fortalecimento e o avanço de uma sociedade justa e harmônica, como colocado no preâmbulo de nossa Constituição.
Mas a condenação de Lins avança um limite bastante perigoso e pode causar o temor de se fazer humor. Já afirmei, em trabalhos anteriores, que a censura é bastante complexa e, frequentemente, não se apresenta como tal. A censura indireta, por exemplo, ocorre quando se impõe obstáculos a alguém de quem a pessoa depende para se manifestar. No caso, uma sentença condenatória em mais de 8 anos de reclusão, com um pagamento milionário, não apenas fará humoristas pensarem três, quatro, dez vezes na elaboração de suas piadas como, decerto, dissuadirá diversos deles de continuarem seu ofício. É o efeito aterrorizador da censura, o malfadado chilling effect..
A dura condenação de Léo Lins matou um pouco do humor.
Isto não é uma defesa do racismo ou do preconceito, muito ao contrário, mas, de fato, tudo depende do contexto. A dureza da pena já impõe medo aos humoristas, e não é por acaso que tais massivamente partiram em defesa de Lins. Uma coisa é você diretamente ser racista com uma pessoa na fila do supermercado, o que é crime; outra é você encarar uma personagem racista em um show de stand up. O segredo é investigar o efeito que os atos causaram em seus destinatários. Como lembrou De La Peña, ninguém passou a chicotear pretos depois de assistir o filme Django livre.
Precisamos discutir os limites do humor de maneira longa, calma e embasada para que não recrudesçamos na liberdade de expressão, que é mais que uma bandeira política, é direito fundamental de toda e qualquer pessoa.