A Convenção 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) explicita que a negociação coletiva compreende todas as negociações realizadas entre, de um lado, um empregador, um grupo de empregadores ou uma ou mais organizações de empregadores, e, de outro lado, uma ou várias organizações de trabalhadores, com o objetivo de fixar condições de trabalho e emprego e regular as relações entre empregadores e trabalhadores ou entre suas respectivas organizações.
Essa definição confere à negociação coletiva um papel fundamental na construção de relações laborais democráticas, participativas e equilibradas, promovendo o diálogo social como instrumento de solução de conflitos e de fortalecimento institucional nas relações de trabalho.
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No contexto do serviço público, a negociação coletiva adquire contornos ainda mais complexos e relevantes. A estrutura do funcionalismo público brasileiro, marcada pela primazia da lei, pela hierarquização normativa e pela ausência de mecanismos efetivos de diálogo institucionalizado entre Estado e servidores, vem sendo objeto de críticas sistemáticas, especialmente no contexto das reformas voltadas à modernização da administração pública.
Nesse cenário, a ratificação da Convenção 151 da OIT – que trata das relações de trabalho na administração pública – por meio do Decreto Legislativo 206/2010 e sua promulgação pelo Decreto 7.944/2013, representou um avanço importante.
Essa convenção estabelece diretrizes para garantir a liberdade sindical e promover a negociação coletiva no setor público, reconhecendo a legitimidade das entidades representativas dos servidores públicos como interlocutores institucionais no processo de formulação de políticas públicas que afetam diretamente suas condições de trabalho.
Entretanto, mais de uma década após a ratificação, a efetiva implementação da Convenção 151 ainda enfrenta sérios obstáculos de ordem normativa, institucional e jurisprudencial. A ausência de uma lei infraconstitucional que regulamente de maneira clara e sistemática os procedimentos de negociação coletiva entre o Estado e seus servidores têm gerado insegurança jurídica e dificultado a concretização desse direito.
Nesse sentido, a PEC 32/2020, que propõe a reforma administrativa, reacendeu o debate sobre os limites, possibilidades e lacunas normativas da negociação coletiva no setor público, exigindo uma análise crítica e profunda do seu conteúdo e dos seus efeitos potenciais.
A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu art. 7º, inciso XXVI, o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, norma essa de aplicação direta aos trabalhadores da iniciativa privada. No entanto, no art. 37, incisos VI e VII, a Carta Magna também garante aos servidores públicos o direito à livre associação sindical, ao passo que restringe o direito de greve e submete o regime jurídico funcional à legislação específica.
A ausência de menção expressa à negociação coletiva no setor público tem sido interpretada de forma restritiva por parte do Poder Judiciário, como ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 492, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, entendeu que a negociação coletiva não se aplicaria aos servidores públicos.
Apesar disso, o voto vencido do ministro Marco Aurélio defendeu que tal direito está assegurado implicitamente pela própria Constituição, especialmente por meio da simetria com os direitos trabalhistas do art. 7º e pela previsão do exercício do direito de greve, o que pressupõe algum tipo de negociação prévia.
Assim, é importante destacar que a Lei 8.112/1990, que regula o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, chegou a prever expressamente, em seu art. 204, a negociação coletiva, mas esse dispositivo foi posteriormente revogado, mantendo-se a lacuna legislativa.
O PL 3831/2015, que buscava regulamentar a negociação coletiva no serviço público de maneira mais detalhada, estabelecendo prazos, procedimentos e obrigações recíprocas entre a administração pública e as entidades representativas, foi vetado integralmente pelo Executivo em dezembro de 2016. Esse veto, amplamente criticado por entidades sindicais e por juristas, demonstrou o distanciamento entre os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e sua efetiva internalização normativa.
A PEC 32/2020, ao propor a flexibilização do regime jurídico dos servidores públicos, introduz instrumentos de avaliação de desempenho, contratações por tempo determinado e novas formas de gestão pública, mas não trata a negociação coletiva para servidores com a devida profundidade. Embora mencione a possibilidade de acordos administrativos sobre temas como jornada e metas, a proposta é silente quanto à institucionalização de mesas permanentes de negociação, mecanismos de solução de impasses e obrigações formais do Estado em responder às pautas das trabalhadoras e trabalhadores públicos.
Com isso, mantêm-se as assimetrias estruturais na relação entre o Estado, enquanto empregador, e os servidores, enquanto categoria representada, comprometendo os princípios do diálogo social e da gestão democrática das instituições públicas e, em última instância, prejudicando a prestação de serviços públicos.
A manutenção da competência legislativa exclusiva da União para tratar de temas centrais como remuneração, estrutura de carreiras e aposentadorias limita substancialmente o escopo de eventuais negociações, que acabam esvaziadas de conteúdo relevante. Essa restrição fragiliza a autonomia negocial dos entes federativos e impede que soluções pactuadas possam ser implementadas de forma plena e eficaz.
Para que a negociação coletiva no setor público se torne efetiva no Brasil, é imprescindível a observância de três pilares fundamentais: (i) a criação de uma legislação específica que regulamente detalhadamente os procedimentos de negociação, os prazos, os temas passíveis de deliberação e os efeitos dos acordos celebrados; (ii) o reconhecimento jurídico e institucional dos sindicatos como interlocutores legítimos, com garantias de participação em instâncias formais e permanentes de negociação; e (iii) a harmonização entre os estatutos funcionais e os termos das convenções coletivas, de modo a assegurar a estabilidade jurídica e a previsibilidade nas relações de trabalho no setor público.
A experiência de diversos países demonstra que é possível compatibilizar o princípio da legalidade administrativa com o direito à negociação coletiva sem comprometer a eficiência da máquina pública nem os direitos fundamentais dos servidores. Ao contrário, a institucionalização da negociação tende a promover maior coesão, transparência e legitimidade nas decisões administrativas, além de contribuir para a prevenção de conflitos e para a valorização do serviço público.
A negociação coletiva no serviço público brasileiro permanece, assim, como um direito formalmente reconhecido, mas de difícil exercício prático. A omissão legislativa e a resistência institucional à sua implementação reforçam a necessidade urgente de regulamentação clara, eficaz e participativa.
A PEC 32/2020, ao não enfrentar essa questão de forma adequada, representa uma oportunidade perdida de avançar rumo a um modelo mais moderno, democrático e inclusivo de gestão pública. Para que o Brasil esteja em conformidade com os tratados internacionais que subscreveu e para que as trabalhadoras e trabalhadores públicos possam exercer plenamente seus direitos, é fundamental que o tema da negociação coletiva seja enfrentado com a seriedade e a urgência que a Constituição e o movimento sindical exigem e a sociedade brasileira, público alvo e razão de ser do Estado, merece.