Por um direito fundamental à desconexão do trabalho em feriados

Olá, caro leitor!

Neste mês de maio, alterando a programação original, vamos tratar de um tema que ganhou contornos altamente polêmicos no último mês, em razão da proximidade da entrada em vigor de uma portaria do Ministério do Trabalho que – pasmem – havia sido editada no distante ano de 2023.

Agora, porém, a praticamente um mês dos seus “terríveis impactos”, surgem as vozes descrentes e descredibilizantes.

Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo

Algo que lembra o alvoroço dos jornais quando foi criado o 13º salário pela Lei 4.090/1962. Algo que já mereceu meu olhar em recente publicação na Folha.

E algo que merecerá a coluna de hoje. Vejamos.

A Portaria MTE 3.665/2023, que entrará em vigor no próximo dia 1º de julho, promove mudanças substanciais nas normas que regem o trabalho em domingos e feriados, especialmente no segmento do comércio e dos serviços. Revogando autorizações permanentes previstas na Portaria 671/2021, estabelece-se que o labor em dias feriados se submeta à prévia negociação coletiva, imprimindo a esse arranjo laboral as notas da temporariedade, da revisão periódica e da consensualidade coletiva.

Trata-se da recuperação do império da legalidade em sentido formal — que não pode ser superada por portarias administrativas, sobretudo em prejuízo do trabalhador — conforme já dispunham a Lei 10.101/2000 e sua alteração pela Lei 11.603/2007 (art. 6º-A).

Além disso, a normativa reforça a segurança jurídica e valoriza o diálogo social, pois as condições para o trabalho em feriados deixam de ser unilateralmente impostas e passam a ser objeto de negociação entre empregadores e sindicatos, prestigiando a autonomia privada coletiva e reforçando o papel constitucional dos sindicatos (CF, art. 8º, III).

Entre os setores impactados estão supermercados, açougues, farmácias, lojas de veículos e diversos outros ramos do comércio varejista. A exigência de convenções ou acordos coletivos de trabalho impõe novos desafios, sobretudo para pequenas e médias empresas, que poderão enfrentar dificuldades operacionais e financeiras para viabilizar negociações sindicais. Ainda assim, a medida representa uma oportunidade para adoção de práticas laborais mais equitativas, que valorizem a negociação coletiva e reconheçam o descanso como aspecto indissociável da dignidade do trabalhador.

Os críticos da nova portaria alegam riscos de desabastecimento em setores essenciais e excesso de “burocracia”. No entanto, a normativa preserva o funcionamento de serviços definidos como essenciais (Lei 7.783/1989, art. 10), tais como postos de combustíveis, hotéis e feiras livres, que permanecem autorizados a operar nos feriados sem a exigência de negociação coletiva.

Vale ressaltar também que a Portaria 3.665/2023 não altera as regras sobre controle eletrônico de jornada (REP-C, REP-A e REP-P, da Portaria 671/2024), como tampouco interfere – e nem poderia – nas normas municipais sobre o funcionamento do comércio.

Por outro lado, o argumento de que a obrigação de negociar coletivamente antes de suprimir ou relativizar um direito tão sensível seja um “excesso burocrático” chega a ser cínico, quando parte daqueles que, há alguns anos (mais exatamente em 2017, ao tempo da reforma trabalhista), pediam maior espaço para a negociação entre patrões e sindicatos e a redução do papel do Estado na regulação das relações de trabalho. A tese do Estado mínimo só tem serventia quando o Estado regula em prol das classes trabalhadoras?

Em plagas brasileiras, no ano de 2024, os processos trabalhistas envolvendo horas extras e intervalos intrajornada estiveram entre os mais recorrentes no Tribunal Superior do Trabalho (TST): foram 70.508 processos relacionados a horas extraordinárias, representando um aumento de 19,7% em comparação com 2023.

Apenas isso já parece revelar que o trabalho além da 8ª hora e/ou em domingos e feriados é recorrente – e cada vez mais recorrente – no Brasil. Nada obstante, a CLT proíbe o trabalho em feriados (art. 70), assegurando o pagamento integral dos dias não trabalhados; e, se trabalhados e não compensados, cabe remunerá-los em dobro, i.e., com adicional de 100% (Súmula 146 do TST).

A regulamentação administrativa do trabalho em feriados busca justamente compatibilizar o funcionamento de atividades econômicas que não devem sofrer soluções de continuidade (veja-se, na origem, o Decreto 27.048/1949) com o direito fundamental ao repouso e à desconexão.

Do ponto de vista social e econômico, porém, o labor em feriados impacta negativamente a saúde física e mental do trabalhador, reduzindo o convívio social e familiar e aumentando os riscos de estresse e exaustão.

Por isso, a Portaria 3.665/2023 anda bem ao promover a negociação coletiva – e não a individual, em que o empregado amiúde se vê instado a consentir com todas as posições patronais – como forma de garantir compensações justas e preservar a integridade do empregado.

Por meio de acordos e convenções coletivas, com efeito, podem-se pactuar medidas de proteção e equilíbrio — como remuneração adicional, folgas compensatórias e limitações de jornada — que alinhem as necessidades econômicas às exigências humanas do trabalho.

Receba gratuitamente no seu email as principais notícias sobre o Direito do Trabalho

Trata-se, assim, de uma normativa que milita na direção da valorização do trabalho humano e da proteção dos direitos fundamentais. E, para mais, restaura-se o império da legalidade, já que, ao revogar várias das autorizações permanentes previstas na Portaria 671/2021 e ampliar o condicionamento do labor em dias feriados à prévia negociação coletiva, a Portaria 3.665 imprime as notas da temporariedade, da revisão periódica e da consensualidade coletiva ao respectivo arranjo laboral, nos termos do art. 7º, XIII, XV e XXVI, da CRFB, além de atender ao disposto pelo art. 6º-A da Lei nº 10.101/2000, na redação da Lei 11.603/2007: “É permitido o trabalho em feriados nas atividades do comércio em geral, desde que autorizado em convenção coletiva de trabalho e observada a legislação municipal, nos termos do art. 30, inciso I, da Constituição” (g.n.); como se vê, “portarias” ou “atos administrativos” não estão mencionados.

Por fim, voltando à questão do trabalho (e do descanso) e em linha de arremate, merecem reflexão as palavras do saudoso Jorge Bergoglio, o papa Francisco, ao ensejo da Laudato Si: a tradição bíblica, não à toa, “estabelece claramente que esta reabilitação [dos homens] implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras. […] O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os outros e com a terra onde vivia e trabalhava”.

E, em linha similar, o filósofo francês Michel Foucault reconhecia e denunciava, ao tratar do biopoder nas relações de trabalho, os mecanismos pelos quais o trabalhador obriga-se a alienar uma parte da sua vida e do seu tempo para o empregador. Um cristão, outro ateu; e, de ambos, a mesma mensagem: é preciso limitar convictamente a apropriação econômica do tempo de vida do outro.

Esses são, afinal, os luminosos nortes — de valorização da pessoa humana em face da máquina do consumo e da reabilitação da pessoa trabalhadora com a sua própria natureza biológica — para os quais caminha a Portaria 3.665/2023. Não é perfeita. Mas é o melhor para o momento.

*

Gostou, querido leitor? Comente conosco: dunkel2015@gmail.com. E, já que hoje (acima) falamos em Bergoglio, leia, na próxima coluna, nossas considerações – e nossas homenagens – em relação ao que ele representou, em seu virtuoso papado, para o mundo do trabalho. Até lá!

Generated by Feedzy