Insegurança jurídica e a jurisprudência ‘banana boat’ do STF

O Supremo Tribunal Federal julgará, sob o regime de repercussão geral, mais uma questão envolvendo os limites da hipótese material de incidência do ISS e o conceito constitucional de serviço para fins de tributação. Desta vez, a Suprema Corte irá examinar, no RE 1.348.288 (Tema 1.210/STF), se há ou não incidência do ISS sobre a cessão de direito de uso de marca.

Como pode ser observado, novamente os ministros do STF serão desafiados a se manifestar sobre o conceito constitucional de serviços para fins de tributação do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN). Logo, ao que parece, é uma grande oportunidade para que sejam sanadas algumas dúvidas dos contribuintes, especialmente se os serviços constitucionalmente autorizados para sofrer incidência do tributo municipal são apenas aqueles entendidos como uma conduta humana apta a adimplir uma obrigação de fazer.

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Isso porque passados tantos anos, entre idas e vindas da jurisprudência do STF a respeito do conceito de serviço, ainda resta muitas dúvidas e insegurança entre os contribuintes sobre a incidência do ISSQN. O que se sabe atualmente é que a mera afirmação de que serviços se trata de uma obrigação de fazer não encerra, por si só, as polêmicas envolvendo a tributação municipal.

O fato é que as decisões do STF vêm oscilando bastante a respeito de que a tributação do ISS pressupõe tão somente a prestação de um serviço consubstanciada em uma obrigação de fazer, começando pela divisão em obrigações de natureza pura ou mista e culminando na vaga definição de que serviço, para fins de tributação, seria o oferecimento de utilidade a outrem. Além disso, as últimas decisões envolvendo a matéria também levantaram a necessária previsão específica do serviço em lei complementar.

Essa situação oscilante de entendimentos da Suprema Corte revela um problema na jurisprudência da Corte Suprema: a ausência de estabilidade e coerência nas decisões judiciais.

O problema, inclusive, já foi retratado em um julgamento histórico no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que o ministro Humberto Gomes de Barros, ao proferir seu voto no Agravo em Recurso Especial 382.736/SC, que tratava da concessão de isenção da Cofins para sociedades civis de profissões regulamentadas, realizou uma comparação da jurisprudência do STJ com um brinquedo muito popular em praias de turismo mundo afora, conhecido como “banana boat”.

Infelizmente, a comparação do ministro Humberto Gomes de Barros ocorreu por causa das corriqueiras alterações de entendimento do STJ que, quando ocorrem bruscamente, provocam a quebra de confiança dos jurisdicionados e insegurança jurídica.

Ocorre que essa crítica não foi por acaso e reflete com propriedade o sentimento dos jurisdicionados. Isso porque, analisando o citado brinquedo, observa-se que a brincadeira se resume no fato dos turistas subirem em uma boia enorme que, por sua vez, é puxada por uma lancha dirigida por um piloto, cujo objetivo é, através de curvas para ambos os lados, derrubar os turistas que estão sentados nessa boia. Nesse cenário, o piloto gira para um lado e depois para o outro até que todos os turistas são derrubados.

Em sua comparação, o saudoso ministro Humberto Gomes de Barros entendia que o STJ seria o piloto que dirigia a lancha e os turistas os contribuintes. Já a lancha seria a jurisprudência dos tribunais que giravam para um lado e para o outro, fazendo com que os turistas fossem atirados para direita e, em seguida, fossem lançados para a esquerda até que finalmente caiam na água.

A verdade é que o ministro Humberto Gomes de Barros acabou se sensibilizando com o cenário de insegurança jurídica provocado com a oscilação de jurisprudência causada pelas alterações de posicionamento do STJ.

Isso porque, nas palavras do ministro do STJ, “Dissemos sempre que sociedade de prestação de serviço não paga a contribuição. Essas sociedades, confiando na Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça, programaram-se para não pagar esse tributo. Crentes na súmula elas fizeram gastos maiores, e planejaram suas vidas de determinada forma. Fizeram seu projeto de viabilidade econômica com base nessa decisão. De repente, vem o STJ e diz o contrário: esqueçam o que eu disse; agora vão pagar com multa, correção monetária etc., porque nós, o Superior Tribunal de Justiça, tomamos a lição de um mestre e esse mestre nos disse que estávamos errados. Por isso, voltamos atrás”.

E conclui o ministro do STJ: “Como contribuinte, que também sou, mergulho em insegurança, como um passageiro daquele vôo trágico em que o piloto que se perdeu no meio da noite em cima da Selva Amazônica: ele virava para a esquerda, dobrava para a direita e os passageiros sem nada saber, até que eles de repente descobriram que estavam perdidos: O avião com o Superior Tribunal de Justiça está extremamente perdido”.

Embora a decisão se refira à jurisprudência do STJ, as suas conclusões também são perfeitamente aplicáveis à jurisprudência do STF quando se trata da discussão envolvendo o conceito de serviço para fins de tributação do ISSQN.

Isso porque, após o julgamento do RE 116.121/SP, datado de 11/10/2000, em que a Suprema Corte fixou o entendimento de que, para que uma atividade seja considerada como serviço, são necessários atos que consubstanciem um prestare ou um facere, a jurisprudência do STF oscilou bastante quanto ao critério de fixação do conceito de serviços para fins de incidência do ISSQN.

Essa constatação pode ser observada nas recentes decisões proferida pelo STF sobre o conceito de serviço para fins de tributação do ISS. Um exemplo é o caso do recente julgamento do RE 882.461 (Tema 816/STF), em que se discutia a constitucionalidade da incidência de ISS na industrialização por encomenda, prevista no subitem 14.5 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003.

Nesse julgamento, após deixar claro que “ao tangenciar a questão da materialidade do ISS, a corte vem admitindo interpretação ampla do conceito de serviços de qualquer natureza”, o ministro Dias Toffoli chegou à conclusão de que o Supremo vem entendendo por superar a clássica dicotomia civilista entre obrigações de dar e de fazer, justificando que tais fundamentos são insuficientes para se determinar se uma situação está abrangida pela materialidade do imposto municipal na atual complexidade da sociedade.

Além disso, não se pode negar que recentemente o plenário virtual do STF afirmou a constitucionalidade da incidência do ISS nas “cessões de jazigos em cemitérios” prevista no subitem 25.05 da Lista de Serviços anexa à LC 116/2003, decidindo, por unanimidade, pela improcedência da ADI 5.869 proposta pela Acembra (Associação de Cemitérios e Crematórios do Brasil).

Nesse julgamento, também foi reconhecido pelo ministro relator, Gilmar Mendes, que “a jurisprudência desta Suprema Corte parece caminhar no sentindo de definitivamente superar a divisão entre obrigação de dar e de fazer para fins de definição de qual tributo incidirá, se ISS ou ICMS, partindo para uma posição que confere primazia ao definido em lei complementar”.

Dessa forma, essa oscilação de entendimentos da Corte Suprema ao longo dos anos sobre o conceito de serviço para fins de tributação do ISSQN tem gerado insegurança jurídica e comprometido a previsibilidade nas relações tributárias.

Tal cenário remete à crítica do ministro Humberto Gomes de Barros sobre a jurisprudência “banana boat”, reafirmando a importância de que o STF, ao julgar o caso, estabeleça um entendimento firme e alinhado à segurança jurídica, garantindo aos contribuintes a necessária estabilidade interpretativa quanto à materialidade do ISS.

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