A segunda instância da OMC é composta por sete julgadores e precisa de no mínimo três para funcionar. O mandato é de quatro anos. Desde o primeiro governo Trump, o órgão está incompleto porque os Estados Unidos vetam todas as nomeações e a eleição dos julgadores precisa ser por unanimidade.
Qualquer membro pode recorrer de uma decisão do painel — mas, se o órgão de apelação está inativo, a decisão fica suspensa indefinidamente, causando o “appeal into the void” no qual a parte recorre, sabendo que o recurso não será julgado nunca.
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Com o tribunal de apelação em funcionamento, a decisão final era automaticamente adotada, salvo consenso contrário de todos os membros (inclusive do vencedor). Essa lógica judicializada criou previsibilidade para o comércio internacional. Sem a instância recursal ativa, ninguém é juridicamente obrigado a cumprir decisões desfavoráveis dos painéis.
Como reação parcial ao verdadeiro boicote de Trump ao tribunal da OMC, Brasil, União Europeia e outros 21 países criaram um mecanismo alternativo temporário, por meio do Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement (MPIA), com base no Artigo 25 do DSU. Trata-se de um arranjo interino de revisão de decisões, mas que só funciona entre países signatários — os EUA, evidentemente, não fazem parte.
Nesse vácuo, os Estados Unidos retomaram práticas tarifárias sem respaldo jurídico. O segundo governo Trump instituiu tarifas superiores a 100% sobre produtos estratégicos, sem recorrer ao DSU ou justificar as medidas com base em exceções legítimas do Tratado da OMC – como segurança nacional ou salvaguardas.
A medida fere diretamente o Artigo II do GATT, o qual proíbe que os países-membros adotem alíquotas superiores às alíquotas máximas consolidadas na Lista de Concessões fornecida por cada país à OMC.
Não obstante a patente desconsideração das normas do bloco comercial, em paralelo, Trump concedeu isenção total para eletrônicos de países asiáticos, sem acordo preferencial formal — em clara violação ao princípio da Nação Mais Favorecida (Artigo I do GATT), que determina que qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedida por um membro a qualquer produto originário de outro país deve ser concedida imediata e incondicionalmente aos produtos similares originários de todos os outros membros (Art. I do GATT), a menos que haja exceções válidas (Acordo Regional, status de país em desenvolvimento com cláusula especial etc.).
A isenção foi setorial e geograficamente seletiva, beneficiando apenas alguns países e produtos, levantando questionamentos sérios sob o prisma da cláusula da Nação Mais Favorecida (Artigo I do GATT). A política americana de isentar eletrônicos de alguns parceiros, sem acordo formal multilateral ou regional aprovado, fere diretamente a não discriminação horizontal que estrutura a OMC.
A escalada tarifária reativou os debates sobre medidas compensatórias. Em resposta, o Brasil editou a Lei 15.122, que prevê Reciprocidade Comercial, especialmente no art. 3º, ao autorizar contramedidas autônomas, na forma de restrição de importações ou suspensão de concessões, contra barreiras unilaterais de outros países.
O ato do governo brasileiro, por outro lado, encontra guarida no Acordo sobre Subsídios e Medidas Comensatórias da OMC (art. 10 -23, SCM Agreement), o qual prevê a aplicação de medida compensatória, sem autorização da OMC, caso a medida seja proporcional e razoável contra tarifas de outros países que funcionem como subsídios ao mercado interno.
É preciso apenas comprovar a existência de subsídio específico ou dano à indústria nacional e o nexo causal. Há, também, outro tipo de medida compensatória, que se dá após a não adoção de laudo do órgão de apelação ou do painel (countervailing measures). Em ambos os casos, trata-se da aplicação de tarifas adicionais pelos países importadores aos produtos subsidiados por governos estrangeiros, com o objetivo de neutralizar a distorção desse subsídio no mercado local.
Subsídios proibidos são aqueles que condicionam explicitamente o recebimento do benefício a: (i) um desempenho específico quanto à exportação de produtos ou (ii) à utilização de bens domésticos em detrimento de bens importados. Esses subsídios são considerados incompatíveis com os princípios do comércio multilateral, pois têm como objetivo direto distorcer o comércio internacional e criar vantagens artificiais para produtos de determinada origem. Já os subsídios acionáveis não são proibidos per se, mas sua legalidade depende de não produzirem efeitos adversos aos interesses de outros membros.
A segunda possibilidade é a aplicação de salvaguardas. A forma francesa sauvegarde passou para o português como salvaguarda, mantendo o sentido de algo que protege, preserva ou assegura contra danos, riscos ou violações. As salvaguardas são utilizadas para proteger temporariamente a indústria nacional contra um aumento repentino e substancial das importações quem comprovadamente causem prejuízo ao mercado interno do país importador.
O Acordo sobre Salvaguardas pode ser utilizado sem autorização da OMC, desde que haja prévia notificação. Casos emblemáticos incluem Brasil vs. Brinquedos da China (1996), quando o Brasil aplicou sobretaxa aos brinquedos chineses, e EUA vs. Aço (2002), no qual os Estados Unidos protegiam a indústria nacional da importação desenfreada de aço. Nos dois casos, as salvaguardas não foram consideradas legítimas por ausência de comprovação de dano grave e consultas prévias.
Por fim, outra possibilidade é o Acordo Antidumping (artigos 1 a 18), que permite que um país aplique tarifas adicionais a produtos importados com preços inferiores ao “valor normal” do mercado exportador (dumping), desde que esse comportamento cause dano à indústria doméstica. É necessário comprovar o dumping, o dano e o nexo causal. A investigação deve garantir o contraditório e a ampla defesa às partes exportadoras. A autorização da OMC não é exigida.
Essas medidas, embora legítimas, exigem investigações técnicas, transparência e defesa do Estado acusado. Sua utilização é especialmente desafiadora para países em desenvolvimento, que enfrentam custos elevados para investigação e aplicação dos tratados.
A aposta unilateral dos Estados Unidos em medidas protecionistas extremas — como as tarifas superiores a 100% aplicadas em 2025 — evidencia o esvaziamento funcional do multilateralismo e a tentativa de remodelar, na prática, a lógica do comércio internacional pela força de mercado. Sem uma instância recursal ativa, o sistema de solução de controvérsias da OMC tornou-se vulnerável à instrumentalização estratégica, como faz os Estados Unidos ao declinar todos os julgadores, forçando a appeal into the void.
O cenário atual revela uma assimetria preocupante: enquanto potências econômicas se aproveitam da inoperância da OMC para violar listas de concessões e flexibilizar obrigações tarifárias, países em desenvolvimento são forçados a recorrer a mecanismos mais lentos, onerosos e politicamente custosos. A discricionariedade na concessão de isenções tarifárias por parte dos EUA, sem qualquer base legal em acordos preferenciais notificados, atinge frontalmente o princípio da Nação Mais Favorecida e reabre o debate sobre o caráter político do comércio.
Os mecanismos de defesa comercial existentes — como as medidas compensatórias, as salvaguardas e o antidumping — continuam a oferecer alternativas legítimas aos países prejudicados, desde que aplicados com critério, proporcionalidade e transparência.
O comércio internacional, tal como foi estruturado após a Segunda Guerra Mundial, baseia-se em regras, não em força. É preciso retomar o compromisso coletivo com a previsibilidade, com o equilíbrio entre soberania e cooperação e com a manutenção de um espaço regulado de comércio entre as nações. Sem isso, o risco é que cada país volte a negociar à margem, à força, como em épocas que julgávamos superadas.