Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) determinaram que o estado do Rio de Janeiro melhore o plano apresentado à Corte para diminuir a letalidade policial no Estado. Entre as obrigações impostas pelo tribunal ao estado e municípios está a elaboração de um plano para a retomada de territórios controlados pelo crime organizado, como milícias e tráfico.
O Supremo também autoriza a Polícia Federal investigar crimes interestaduais e internacionais – como nos casos de facções criminosas que atuam em diferentes estados brasileiros e fora do país – e possibilita a abertura de inquérito federal para apurar a presença de infiltrados do crime organizado no estado do Rio de Janeiro. O STF ainda aumenta de 120 para 180 dias o prazo para instalação de câmeras nas fardas e nas viaturas policiais.
Na avaliação da Corte, o estado fez avanços desde 2020, quando o STF começou a impor medidas para reduzir a letalidade policial, porém, ainda insuficientes. Dessa forma, o Supremo homologa parcialmente o documento fluminense, mantém algumas medidas já determinadas em liminares pelo STF e pede melhorias nas políticas públicas. A discussão ocorreu na ADPF 635, que ficou conhecida como ADPF das Favelas.
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A decisão ainda deixa a cargo das forças policiais a definição do grau de força necessário para operações, mas pondera que é preciso proporcionalidade e planejamento prévio. Será possível justificar as operações de emergência posteriormente, mas os órgãos de controle e o Poder Judiciário avaliarão as justificativas. Dessa forma, o STF deu mais autonomia às forças policiais, que vinha reclamando do excesso de interferência da Corte.
Quando houver mortes em decorrência de intervenção policial, o tribunal determina que o Ministério Público estadual seja imediatamente comunicado.
A decisão prevê a criação de um grupo de trabalho para acompanhar o cumprimento da decisão do Supremo, esse comitê será coordenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que definirá sua composição e deverá publicar relatórios semestrais com as informações sobre o controle externo da atividade policial. Portanto, o STF entende que a ADPF das favelas é um litígio estrutural e o STF vai continuar acompanhando os desdobramentos da decisão.
O colegiado do STF não restringe a realização de operações policiais em perímetros nos quais estejam localizados escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, mas pondera que deve “haver o respeito rigoroso às exigências de proporcionalidade no uso da força”, principalmente quando as crianças estiverem saindo da escola.
O uso de escolas e hospitais em operações policiais pode ocorrer no “caso de extrema necessidade”. Também fica autorizado o uso de helicópteros em operações policiais. Os dois tópicos eram vistos com reservas pela segurança pública do Rio de Janeiro sob o argumento de que as restrições inviabilizariam as operações policiais.
Para o cumprimento da decisão, o STF autoriza o recebimento de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública pelo Estado do Rio de Janeiro por meio de convênio ou contrato de repasse.
Outra determinação é para que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a Receita Federal e a Secretaria de Estado da Fazenda do Rio de Janeiro deem a máxima prioridade para os casos de lavagem de dinheiro nas investigações contra o crime organizado.
Consenso
O voto foi construído em consenso entre os ministros após uma série de encontros e almoços que ocorreram depois do relator, Edson Fachin, apresentar o seu voto no dia 5 de fevereiro de 2025. Uma ala dos ministros se alinhava mais a Fachin e defendia que as medidas impostas eram necessárias, outra corrente defendia que as regras eram rígidas e intervencionistas, portanto, era preciso dar mais autonomia ao estado do Rio de Janeiro. Por isso, a construção em conjunto foi a solução encontrada no STF.
O voto consensual veio mais enxuto – 24 páginas – e menos pormenorizado que a primeira versão apresentada pelo ministro relator, Edson Fachin, que tinha 182 páginas. A preocupação dos ministros foi a de desmentir a falsa informação de que o STF proibiu operações policiais no Rio de Janeiro de modo a contribuir para o crescimento do crime organizado no estado. Leia a íntegra.
“Repise-se, ainda, inexistir qualquer decisão proferida no bojo da presente Arguição que impeça ou restrinja a ação policial em situações inadmissíveis como a utilização de barricadas no ingresso de comunidades ou controle territorial de comunidades mediante uso de armamento pesado”, afirmou o relator, ministro Edson Fachin.
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O ministro Alexandre de Moraes complementou: “Vimos ações politiqueiras que acabaram atacando o tribunal e o relator, Edson Fachin”.
“A ideia é criarmos uma polícia verdadeiramente cidadã e de proteção à população, quem deve temer a polícia não é o cidadão”, disse o presidente do STF, Luís Roberto Barroso. “O tribunal está comprometido para que seja construída uma política pública que restaure o máximo de paz possível no Rio de Janeiro, com respeito aos direitos fundamentais”, acrescentou.
O ministro Edson Fachin argumentou que “não pode haver antagonismo entre a proteção de direitos humanos e fundamentais e a construção de políticas de segurança pública compatíveis com a Constituição”.
A ADPF das Favelas virou alvo de críticas do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), e do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD). Os dois defenderam que a intervenção do STF resultou em explosão da violência. Castro repetiu reiteradas vezes que um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostrou que o Comando Vermelho cresceu no Rio de Janeiro após as intervenções do STF. Contudo, o CNJ anexou nos autos do processo, que essa conclusão é da Secretaria de Segurança Pública do RJ, e não é a conclusão do grupo de trabalho do CNJ.
“Eu acho que já há um erro originário nessa discussão, que em vez de a gente estar discutindo o crime, a gente tá discutindo o policial”, afirmou Castro, que esteve presente durante o julgamento. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e familiares de vítimas da letalidade policial no Rio de Janeiro acompanharam o julgamento no plenário, em Brasília.
Durante as discussões, o ministro Flávio Dino disse: “A ideia é que o crime organizado se concentra nas áreas populares do Rio de Janeiro e isso não é verdade. O principal no crime organizado do Rio de Janeiro não está nos bairros populares, morros ou periferias. Na verdade, está no asfalto, tanto no que se refere ao financiamento do crime organizado e milícias quanto à lavagem de dinheiro”. Neste momento, ele foi aplaudido por familiares de vítimas presentes no STF. “Segurança pública não é dar tiros aleatoriamente”, complementou.
“O tribunal não tem a chave do cofre, nem tropas. Por isso, a decisão depende da execução de outros Poderes”, disse Barroso ao encerrar o julgamento.
RJ vai cumprir a decisão, diz governador
Questionado se as determinações do STF são factíveis – como por exemplo, a instalação das câmeras nas fardas e nas viaturas policiais – , o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, disse que o estado já começou a implementar as câmeras e informou que, à medida que não for conseguindo cumprir as determinações, vai comunicar ao STF. “ A ordem aqui hoje é cumprir a decisão. Se a gente entender que um ponto ou outro não dá para ser cumprido naquele prazo, a gente pode pedir uma dilação. Mas não vamos começar dizendo que não vamos cumprir não”
Sobre a entrada da PF nas investigações, Castro disse que pede isso há dois anos para investigar crimes de fronteira, entrada de armas e drogas e lavagem de dinheiro. “Saio feliz da vida de ouvir que a Polícia Federal será obrigada a entrar com a gente nisso”, disse. “Eu só não acredito que os 12 mil homens da PF vão entrar em comunidade e resolver os problemas. Acho que isso nem é o papel dela. A PF vai entrar em investigações de tráfico de armas, de drogas, lavagem de dinheiro, organizações que entram no poder público”, acrescentou.
Para o governador, o maior desafio será a elaboração dos planos para retomada de territórios ocupados por traficantes e milícias, mas disse que o estado já vem trabalhando para isso.
Advogado do PSB diz que STF evidenciou a existência da violência policial
O advogado do PSB, Daniel Sarmento, disse que preferia a primeira versão do voto do relator, ministro Edson Fachin, mas entende que em um órgão colegiado haveria mudanças. Em sua avaliação, um dos pontos mais importantes é a entrada da Polícia Federal para investigar não só o crime organizado, mas também a infiltração do crime dentro do próprio estado.
Sarmento também achou importante o STF continuar monitorando as ações contra a letalidade policial no Rio de Janeiro e a participação da sociedade civil no comitê que vai fiscalizar o cumprimento da decisão. Além disso, reforçou o fato de a decisão ser unânime, o que, em sua opinião, demonstra que o STF entende que existe a violência policial e não apenas uma ala “esquerdista” da Corte como chegou a ser dito por políticos.
Contudo, Sarmento lamentou o fim da restrição das operações próximas a escolas e hospitais e a obrigatoriedade de ambulâncias em operações policiais. Sobre a imposição da criação de planos para tomada de territórios dominados por milícias e traficantes, Sarmento disse que ainda vai analisar a decisão para se posicionar.
O advogado do Movimento Negro Unificado, Humberto Adami Santos Júnior, acredita que a decisão do STF é o início de um processo que é basilar, que será referencial para os 27 estados e o Distrito Federal. Para Adami, Castro “ganhou uma grande tornozeleira no pé”.
A ação
A ação foi ajuizada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que alegou violação massiva de direitos fundamentais no estado do Rio de Janeiro, em razão da omissão estrutural do governo do Rio de Janeiro na adoção de medidas para reduzir a letalidade policial.
O autor da ação aponta a existência de um quadro de grave violação generalizada de direitos humanos em razão do descumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília.
A decisão reconheceu ter havido omissão relevante e demora do Estado do Rio de Janeiro na elaboração de um plano para a redução da letalidade dos agentes de segurança. Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos são vinculantes para o Estado brasileiro, ou seja, representam uma obrigação.