Desafios do constitucionalismo no ambiente digital

Em janeiro de 1997, Neal Horsley criou o Nuremberg Files, um sítio eletrônico que tinha como propósito listar e identificar pessoas envolvidas na prática de aborto nos Estados Unidos. Endereços, nomes de familiares, fotos e até mesmo placas de carro foram facilmente divulgadas na internet com a seguinte chamada: “Visualize os abortistas em julgamento”.

Como consequência, alguns médicos passaram a sofrer ameaças enquanto outros de fato foram encontrados mortos. Quando isso acontecia, seus nomes eram gradualmente retirados da lista. Horsley sustentou que não queria causar mal, mas apenas coletar e divulgar as informações porque acreditava que no futuro essas pessoas poderiam vir a ser julgadas por crimes contra a humanidade e não queria que saíssem impunes por falta de provas, como aconteceu com alguns nazistas[1].

O episódio ilustra bem os desafios do constitucionalismo no ambiente digital. A ampliação do espaço público proporcionou inovações na dinâmica social. A virtualização das ações e a rapidez dos seus efeitos desafiam o sistema jurídico e demandam da teoria constitucional uma nova perspectiva, pois as soluções oferecidas pelo direito demonstram-se insuficientes.

Nesse contexto, falar de “constitucionalismo digital” demanda a compreensão do significado semântico dessas palavras, sob pena de se utilizar de maneira puramente retórica palavras conectadas para sustentar um modismo sem nenhuma justificativa semântica. A expressão pretende identificar o momento constitucional em que o desenvolvimento de relações jurídicas ocorre na internet, demandando a concretização e proteção de direitos fundamentais também nesse ambiente.

Contudo, é preciso observar que não se trata de um constitucionalismo com características digitais. Não estamos adicionando uma qualidade ao constitucionalismo. Conforme explica Celeste[2], a palavra digital é utilizada no sentido de enfatizar a existência de uma teoria que pretende articular os princípios constitucionais para a sociedade digital.

No desenvolvimento do constitucionalismo, novas conquistas foram adicionadas ao movimento constitucional iniciado no passado, desde a limitação do poder político, a declaração de direitos, até a conquista das garantias da liberdade, da igualdade e dos direitos sociais. A busca pela efetividade e pela concretização dos direitos fundamentais foi a preocupação mais recente do constitucionalismo contemporâneo, mas o desenvolvimento da internet adicionou mais elemento na avaliação da ideia de efetividade do sistema jurídico como um todo.

Como a teoria constitucional desenvolve-se por camadas e é influenciada por contextos históricos, culturais, políticos e geográficos, o constitucionalismo não possui características únicas, pois é identificado conforme seu contexto de tempo e lugar para que seja possível avaliar suas características diante dos vários cenários possíveis.

No caso do “constitucionalismo digital”, o contexto de tempo é enfatizado pelo momento atual de facilidade e rapidez proporcionadas pelo avanço tecnológico. Para Klaus Schwab, o desenvolvimento tecnológico marca a ascensão da quarta revolução industrial, caracterizada pelo surgimento de inovações computacionais capazes de virtualizar a sociedade[3]. No contexto do lugar, as relações jurídicas virtualizadas acontecem em um ambiente digital proporcionado pela internet e por aplicativos de redes sociais. Ou seja, para além do ambiente físico de relações analógicas, o ambiente é digital e permite a virtualização da sociedade.

Acontece que a predominância das redes sociais na vida das pessoas transforma o comportamento e suas ações[4]. Na perspectiva dos direitos fundamentais, a fragilização da proteção da imagem, da privacidade e da segurança está cada vez mais evidente. Os riscos não são mais os mesmos dos ambientes físicos e as ameaça muitas vezes sequer são percebidas diante da vulnerabilidade das pessoas no ambiente digital.

A dinâmica social do ambiente digital consagra a ideia de que qualquer pessoa pode livremente manifestar opiniões nas redes sociais e nada melhor do pautas ideológicas para transformar opiniões em verdade. É como afirma Empoli: “O verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações”[5]. Descobrir a verdade está cada vez mais difícil diante da manipulação dos dados, da imagem e até mesmo da voz, proporcionada pela inteligência artificial e outros avanços tecnológicos.

O fato é que a sociedade algorítmica molda e direciona o fluxo das informações. Além da própria dinâmica adotada pelos aplicativos de redes sociais para direcionamento de conteúdo, há ainda perfis falsos e influenciadores que manipulam[6] informações e dificultam a busca por perspectivas diferentes. Isso facilita a disseminação da (des) informação por grupos extremistas que, com amparo na ideia de liberdade de expressão, esquivam-se das consequências dos seus atos. Para Cass Sunstein[7], os perigos dos excessos da liberdade de expressão na internet ficam ainda mais evidentes sobretudo quando há sítios eletrônicos que são hospedados por terceiros com nenhuma relação com o seu conteúdo[8].

No Brasil, os eventos de 8 de janeiro de 2023[9] também podem servir de exemplo para os desafios apresentados ao constitucionalismo do ambiente digital. Manifestações políticas são protegidas constitucionalmente pela liberdade de expressão, mas o escalonamento silencioso da forma de utilização desse direito sem qualquer explicação das suas consequências comunica a falsa ideia de que não há qualquer consequência pelos atos praticados sob a proteção da liberdade, confundindo-se a noção de responsabilidade e censura.

A sociedade ganhou mais espaço com a internet, relações foram virtualizadas e condutas foram facilitadas, mas, soluções apresentadas pelo direito demonstram-se insuficientes. Como controlar, organizar e harmonizar uma sociedade que se desenvolve com base em algoritmos, quando as relações sociais são movidas por impulsos e likes? Liberdade de expressão, privacidade, proteção à imagem, direito à saúde (sobretudo a saúde mental), proteção do consumidor (compras online), da criança e do adolescente (saúde mental, redes sociais e conteúdos impróprios)[10]. Calúnia, injúria, difamação. Estelionato, racismo, falsidade ideológica. Liberdade das mídias, proteção contra o anonimato. Cyberbulling. Responsabilidade civil, penal e administrativa. Tributação da economia digital… Sob a perspectiva desse ambiente digital, todo o sistema jurídico sofre impactos.

Tudo isso justifica que novas camadas precisem ser adicionadas ao constitucionalismo já que os princípios constitucionais existentes não são mais capazes de resolver os desafios da sociedade contemporânea[11]. A revolução digital está produzindo uma série de transformações na sociedade contemporânea e isso atinge os sistemas jurídicos e normas constitucionais. As Constituições existentes foram formatadas para um mundo analógico e pessoas físicas e não oferecem garantias expressas para o ser digital[12].

Não há dúvidas da alteração do equilíbrio constitucional de modo que se exige novas respostas do direito e questiona-se o papel do Estado e até mesmo a manutenção de sua soberania. Se falar de constitucionalismo é falar da forma de ser de um determinado estado constitucional, identificando as suas características desenvolvidas a partir da sua experiência na construção de sua história constitucional, não há como negar o contexto histórico que estamos vivenciando.

Assim, é preciso compreender que o constitucionalismo contemporâneo é também o constitucionalismo do ambiente digital para que seja possível assegurar a concretização dos direitos fundamentais e a efetividade da Constituição nessa realidade. Na verdade, o “constitucionalismo digital” é mais uma camada do constitucionalismo contemporâneo que se desenvolve em razão dos desafios que o ambiente digital proporciona e demanda da teoria constitucional uma perspectiva realista, capaz de oferecer de fato soluções capazes de proteger os direitos fundamentais e o sistema democrático nessa nova dinâmica social.

[1] SILVERBERG,  Eric et. al. The Nuremberg Files, CS201 Final Project. Disponível em:  https://cs.stanford.edu/people/eroberts/cs181/projects/1998-99/nuremberg-files/overview.html. Acesso em: 04 de jun de 2024.

[2] CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bills of Rights. 1 ed. New York: Routledge, 2022 p. 82. Disponível em: https://doi.org/10.4324/9781003256908. Acesso em: 05 de junho de 2024.

[3] SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016, p. 37.

[4] Para Max Fischer, por ser tão predominante na vida das pessoas, a tecnologia das redes sociais exerce uma atração poderosa na psicologia e na identidade das pessoas. (FISCHER, Max. A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Tradução: Érico Assis. Editora: Todavia, São Paulo, 2023, p. 21.)

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. Trad. Arnaldo Bloch. São Paulo, Vestígio, 2020. P. 24.

[6] No Brasil são vários os casos de consequências indesejadas das informações e desinformações divulgadas. Em recente caso, um humorista brasileiro foi envolvido em polêmica quando um portal de notícias em redes social divulgou informações falsas que influenciaram no suicídio de uma jovem (PEREIRA, Felipe. Caso Choquei: Whindersson Nunes diz apoiar lei contra fake news. CNN Brasil, São Paulo, 25/12/2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/caso-choquei-whindersson-nunes-diz-apoiar-lei-contra-fake-news/. Acesso em: 05 de janeiro de 2024)

[7] SUSTEIN, Cass R. #republic: divided democracy in the age of social media. New Jersey: Princeton University Press, 2017, p. 191-192.

[8] Tramita na Câmara dos Deputados o PL 2630 que estabelece normas relativas à transparência das redes sociais e de serviços de mensagens privadas, mas um dos seus principais pontos é tratar da responsabilidade dos provedores dos serviços no combate à desinformação. De acordo com a proposta, em caso de dano imediato ou de difícil reparação os usuários não precisarão ser notificados sobre a remoção do conteúdo, mas poderão recorrer da decisão. (BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2630, de 03 de julho de 2020. Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Brasília: Senado Federal, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735. Acesso em: 04 jan. 2024). Também o Supremo Tribunal Federal discute o assunto nos temas 987 e 533.  Ambos tratam da responsabilidade civil de provedores de aplicação de internet, bem como de empresas que hospedam os sítios que proporcionam a propagação do conteúdo ilícito. Atualmente, a responsabilidade dos provedores desse tipo de serviço só é concretizada diante de descumprimento de ordem judicial. GOOGLE – REDES SOCIAIS – SITES DE RELACIONAMENTO – PUBLICAÇÃO DE MENSAGENS NA INTERNET – CONTEÚDO OFENSIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR – DANOS MORAIS – INDENIZAÇÃO – COLISÃO ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO vs. DIREITO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE, À HONRA E À IMAGEM. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO PLENÁRIO VIRTUAL DESTA CORTE. (BRASIL. STF. Tribunal Pleno.  Agravo em Recurso Extraordinário n 660861 RG. Relator Ministro Luiz Fux. Brasília/DF. Data do Julgamento: 22 mar. 2012. Data de Publicação 07 nov. 2012.)

[9] BRASIL. STF. Tribunal realiza exposição em memória aos ataques de 8/1. Brasília, DF, 02/01/2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=523698&ori=1. Acesso em: 02 de janeiro de 2024.

[10] Nos Estados Unidos os estudos do psicólogo Jonathan Haidt sugerem tirar smartphones das crianças em razão de prejuízo psicológico.  REMNICK, David. Jonathan Haidt Wants You to Take Away Your Kid’s Phone:

The social psychologist discusses the “great rewiring” of children’s brains, why social-media companies are to blame, and how to reverse course. The New Yorker. The New Yorker Interview. 20 de abril de 2024.  Disponível em: https://www.newyorker.com/news/the-new-yorker-interview/jonathan-haidt-wants-you-to-take-away-your-kids-phone . Acesso em: 23 de maio de 2024.

[11] CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bills of Rights. 1 ed. New York: Routledge, 2022 p. 81. Disponível em: https://doi.org/10.4324/9781003256908. Acesso em: 05 de junho de 2024.

[12] CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bills of Rights. 1 ed. New York: Routledge, 2022 p. 2. Disponível em: https://doi.org/10.4324/9781003256908. Acesso em: 05 de junho de 2024.

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