O Direito Financeiro nas tragédias climáticas

A recente tragédia que acomete o Rio Grande do Sul – uma das maiores, talvez a maior da história no Brasil – causou perdas humanas e materiais impossíveis de serem mensuradas.

A vida continua, diminuir os danos e reconstruir a vida é a tarefa que se impõe. O trabalho voluntariado deu um exemplo a todos, com colaborações de toda sorte, mostrando a solidariedade que faz parte da natureza dos brasileiros.

Mesmo assim, a ação do Estado é fundamental em momentos como esse, e os instrumentos disponíveis são muitos, sendo essenciais aqueles que estão na verdadeira “caixa de ferramentas” do Direito Financeiro.

Há desde os instrumentos adequados para que o poder público atenda interesses diretos das pessoas, como auxílios financeiros de diversas naturezas, voltados a ajudar a prover habitação, redução ou postergação no pagamento de tarifas, moratórias tributárias[1], reconstrução de casas, créditos facilitados para recuperação de pequenas empresas, além de ações diretas do Estado na recuperação dos danos causados pelas ações da natureza. Vários deles foram referidos quando tratei do tema na coluna Tragédia de Petrópolis expõe as mazelas da administração pública[2] – o que, por oportuno, mostra que o problema é recorrente.

No caso específico do Rio Grande do Sul, a MP 1219, de 15/5/2024, instituiu um apoio financeiro, apelidado de “auxílio reconstrução”, destinado às famílias desalojadas ou desabrigadas nos municípios do Estado com estado de calamidade pública ou situação de emergência reconhecida pelo Poder Executivo federal, constituído por parcela única no valor de R$ 5.100[3].

Desta vez, no entanto, a área atingida foi de grandes dimensões, alcançando boa parte de todo o Rio Grande do Sul, e assumindo proporções difíceis de prever e imaginar.

Nesse caso, o prejuízo material e financeiro extrapolou os limites de um ou alguns municípios, tornando necessário acionar instrumentos financeiros que possam ser úteis para resolver ou ao menos atenuar as dificuldades e danos causados às finanças públicas do ente federado atingido, como foi o caso do Rio Grande do Sul e seus municípios, viabilizando a rápida recuperação também no âmbito das finanças públicas.

É razoável supor que, em se tratando de tragédias de grandes e imprevisíveis dimensões, o regular funcionamento das finanças públicas fique prejudicado, com necessidade de alterações significativas no planejamento orçamentário, dadas as urgentes alterações na alocação dos gastos públicos. Também os limites voltados a manter um sistema responsável de gestão das finanças públicas tornam-se um obstáculo que precisa ser transposto, pois sua rigorosa observância causará danos maiores e mais graves do que aqueles que eventualmente ocorreriam com o respeito às normas vigentes para situações de normalidade.

O período de pandemia foi pródigo em alterações legislativas em matéria de finanças públicas, em razão da necessidade de adaptação da nova situação econômica vigente com as consequências advindas dessa excepcionalidade. Várias foram as modificações, em geral relacionadas à flexibilização de limites de gastos e possibilidades de crédito.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) já continha em seu texto original, especialmente no art. 65, regras para ajustes em caso de excepcionalidades, abrindo possibilidades para flexibilização nos limites para as despesas com pessoal e para obtenção de crédito, facilitação na execução orçamentária e realização de despesas públicas, benefícios fiscais e outras medidas.

No período de pandemia, houve expansão desses benefícios pela Lei Complementar 173/2020, e recentemente, foi publicada a Lei Complementar 206, de 16/5/2024. Nela, os entes federativos afetados por estado de calamidade pública, decorrente de eventos climáticos extremos, puderam postergar o pagamento da dívida com a União, além de reduzir a zero por cento (0%) a taxa de juros.

O Rio Grande do Sul foi contemplado com um “apoio financeiro” concedido pela União aos municípios em estado de calamidade pública, que consistiu na entrega de montante equivalente ao valor creditado aos referidos municípios, no mês de abril de 2024, a título do Fundo de Participação dos Municípios, livre de vinculações a atividades ou a setores específicos (MP 1222, de 21/5/2024).

As recentes Medidas Provisórias 1223 e 1225 fizeram uso de outro instrumento próprio dos orçamentos públicos em emergências dessa natureza, abrindo créditos extraordinários com dotações que deem respaldo aos gastos imprevistos e urgentes, decorrentes de calamidade pública, adaptando a execução da lei orçamentária a essa contingência.[4]

Já há normas aplicáveis para essas situações de calamidade, como se vê da Lei 12.608/2012, que “institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC); dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (CONPDEC)”, bem como recursos e instrumentos disponíveis para atender a essas demandas, como se pode constatar do Fundo Nacional para Calamidades Públicas (Funcap), criado pelo Decreto-lei 950/1969, atualmente previsto na Lei Federal 12.340/2010 e alterações posteriores, do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima – FNMC (criado pela Lei 12.114, de 9 de dezembro de 2009 e regulamentado pelo Decreto 9.578, de 22 de dezembro de 2018), e outros, em legislações das diversas unidades da federação[5]. Mais uma vez, o que se constata é não faltarem normas para regular o tema, e sim que sejam efetivas e tempestivamente aplicadas.

A gestão de crises dessa natureza e com essas dimensões é um problema complexo de gestão pública, envolvendo as grandes questões que exigem constante aperfeiçoamento. Além da óbvia urgência nas ações, que é sempre uma dificuldade no âmbito do setor público, regra geral envolvem relacionamento interfederativo, intersetorial, com políticas públicas transversais e colaboração entre poderes e órgãos independentes.

Situações como essa testam o funcionamento do federalismo cooperativo brasileiro, exigindo ações conjuntas de todos os entes federados, simultânea e rapidamente, em colaboração com o setor privado e o terceiro setor, como se teve e está tendo oportunidade de se ver no Rio Grande do Sul[6]. Mas o que se constata é muito improviso, evidenciando que o planejamento do setor público ainda não está suficiente e adequadamente preparado para atender essas demandas de forma eficiente, e muitas vidas são perdidas, recursos públicos são desperdiçados e todos saem prejudicados.[7]

Fato é que as catástrofes passaram a representar parcela importante dos gastos públicos, e justificam mais atenção dos gestores, a fim de dar mais eficiência à administração desse tipo de situação, melhor aplicando os recursos.

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) divulgou estimativa de que os prejuízos ao país, no total, foram de R$ 639,4 bilhões, e nesses cinco primeiros meses de 2024, os desastres já causaram uma perda de R$ 32,1 bilhões.[8] Consultorias de mercado estimam em 118 bilhões o impacto que o socorro ao Rio Grande do Sul pode ter nas despesas primárias, chegando a 1% do PIB.[9]

Números mais do que suficientes para que o setor público passe a se preocupar e com o assunto, instituindo instrumentos de planejamento não só administrativo, mas também financeiro, que possam dar suporte ágil a essas situações, permitindo ações imediatas e desburocratizadas, livrando o poder público de amarras usualmente existentes para situações de normalidade, mas que permitam manter o controle das ações e recursos utilizados.

Eventos climáticos extremos, capazes de provocar grandes danos, como os ora verificados, são recorrentes na história, sempre ocorreram e continuarão a acontecer. E a maior atenção que a sociedade tem dedicado às mudanças climáticas, conscientizando os danos que as pessoas podem causar, seguramente terão efeito benéfico para mitigar essas catástrofes. A Agenda 2030 da ONU, na maior parte de seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), coloca as questões ambientais como centro das preocupações da humanidade nos próximos anos.

É sabido que a ação humana não tem o poder de alterar substancialmente os caminhos da natureza, impedindo que se possa esperar, em curto ou médio prazos, que esses problemas deixem de acontecer. Por isso, é necessário agir, de forma rápida e eficiente, e se preparar para esses acontecimentos, evitando os danos, mitigando seus efeitos e recuperando-se o quanto antes.

Nesse sentido é importante aperfeiçoar esses instrumentos de Direito Financeiro que podem colaborar muito com esses objetivos no âmbito das finanças públicas, e mostram sua relevância para a vida das pessoas.

[1] Sobre o ema, veja-se coluna recém-publicada neste Portal Jota: SCHOUERI, COSTER: Calamidade no RS e moratória: uma questão de legalidade, publicada em 27.5.2024 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/calamidade-no-rs-e-moratoria-uma-questao-de-legalidade-27052024).

[2] Publicada nesta Coluna Fiscal em 24.2.2022 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/tragedia-petropolis-administracao-publica-24022022).

[3] Auxílio Reconstrução: governo lança site para cadastro das famílias, in Agência Brasil,  [Auxílio Reconstrução: governo lança site para cadastro das famílias | Agência Brasil (ebc.com.br)].

[4] Governo federal libera mais R$ 1,8 bilhão para ações de apoio ao RS (Governo federal libera mais R$ 1,8 bilhão para ações de apoio ao RS | Agência Brasil (ebc.com.br)).

[5] Sobre o tema, vide as colunas publicadas neste Portal Jota: Direito Financeiro e Meio Ambiente (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/direito-financeiro-e-meio-ambiente-19092019) e Fundo Clima e Fundo Amazônia (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/fundo-clima-e-fundo-amazonia-29102020). Integram o livro “A luta pelo Direito Financeiro” (1ª ed., Blucher, 2022, pgs. 91-96 e 121-124 – https://www.blucher.com.br/a-luta-pelo-direito-financeiro).

[6] Como referido com propriedade no recente texto de Mário Augusto Araújo, A União, o direito financeiro e a reconstrução do Rio Grande do Sul (Revista Conjur, em 24 de maio de 2024 – https://www.conjur.com.br/2024-mai-24/a-uniao-o-direito-financeiro-e-a-reconstrucao-do-rio-grande-do-sul/).

[7] Como se pode reiteradamente constatar, pouca atenção se dá ao planejamento: “Candidatos a governador do RS ignoraram enchentes em planos de governo”, in Folha de S. Paulo, 27.5.24 (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2024/05/candidatos-a-governador-do-rs-ignoraram-enchentes-em-planos-de-governo.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newspainel).

[8] CNM: Brasil gastou R$ 639,4 bilhões com desastres naturais em 11 anos (CNM: Brasil gastou R$ 639,4 bilhões com desastres naturais em 11 anos (correiobraziliense.com.br),

[9] Socorro ao RS pode ter impacto de R$ 118 bi na despesa primária (Socorro ao RS pode ter impacto de R$ 118 bi na despesa primária | Brasil | Valor Econômico (globo.com).

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