No último mês de janeiro, este Jota publicou o artigo intitulado “O tratamento do self-preferencing fora dos mercados digitais”, da professora Ana Sofia Monteiro Signorelli e do colega Guilherme Ornelas Monteiro. Como já é habitual aos referidos autores, o artigo em questão é muito instigante, suscitando diferentes questões relativas à abordagem concorrencial ao self-preferencing (ou, em Português, “autopreferência”) e, principalmente, a uma possível relação indissociável e umbilical entre a referida conduta e os mercados digitais.
Tal artigo motivou a elaboração das presentes considerações, não em tom de réplica, mas sim em tom propositivo, com pontos adicionais sobre uma discussão em contínua ebulição. Afinal, se mesmo após mais de um século os objetivos do transversal Direito Concorrencial ainda são objeto de persistente disputa, ainda há muita lenha para ser queimada em debates sobre todos os demais temas a ele relacionados, como é o caso do enforcement antitruste em condutas unilaterais.
Na verdade, o que se pretende aqui é pontuar o que deve realmente importar na análise concorrencial de uma conduta unilateral: o rótulo que lhe é atribuído ou os seus efeitos à livre concorrência? Em outras palavras, em análises de condutas unilaterais, uma autoridade antitruste deve estar mais preocupada:
a princípio, em colocar as práticas comerciais e/ou empresariais que podem configurar um ilícito antitruste em caixas hermeticamente fechadas e rotuladas; ou
em sopesar os efeitos líquidos de tais práticas sobre o mercado, com uma abordagem sob o prisma do bem-estar?
Aqui, a opinião é que a avaliação dos efeitos deve se sobrepor à atribuição de rótulos apriorísticos. Aliás, cumpre notar, desde já, que a aplicação do Direito Concorrencial, principalmente em casos de condutas unilaterais, orienta-se por análises materiais, centradas em efeitos, e não por formalismos jurídicos.
Esse ponto é ainda mais relevante diante do positivismo jurídico que insiste em pairar sobre o direito brasileiro, do qual parece não conseguir se desvencilhar a despeito, por exemplo, da confusão decorrente da infinidade de normas já existentes.
No caso, o exacerbamento do positivismo jurídico stricto sensu pode acabar deturpando a função repressiva do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Isso porque, ao enquadrar e rotular, prima facie, práticas comerciais e/ou empresariais capazes de caracterizar infrações à ordem econômica, esse eventual positivismo à brasileira pode levar à desconsideração ou ao verdadeiro descarte preliminar de abusos de posições dominantes que podem gerar ou já estar gerando ineficiências alocativas, produtivas e/ou dinâmicas – estas últimas relativas a progresso técnico.
O foco nos efeitos das – mais diferentes e diversas – condutas anticoncorrenciais unilaterais está previsto na Lei Federal 12.529/2011. Qualquer conduta que gere, ainda que potencialmente, os efeitos previstos nos incisos I a IV do caput do art. 36 de tal Lei caracteriza uma infração à ordem econômica.
Nesse contexto, nota-se que o rol de condutas, disposto no art. 36, §3º, da Lei Federal 12.529/2011, é meramente exemplificativo, cumprindo ressaltar a expressão “além de outras” na redação do referido dispositivo. Essa interpretação é unissonamente reconhecida tanto pela doutrina quanto pelos precedentes do CADE. Trata-se de uma garantia bem conferida pelo legislador, tendo em vista, nas lições da professora Ana Frazão, a “impossibilidade de se definir aprioristicamente todas as hipóteses de infração à ordem econômica, sobretudo em face da variação e da constante evolução das práticas empresariais.”1
É justamente essa interpretação que permite a utilização do termo self-preferencing em discussões relativas a condutas anticompetitivas unilaterais no país, pois esse termo (mesmo no vernáculo “autopreferência”) não está explicitado no §3º, do art. 36, da Lei Federal 12.529/2011. Nesse cenário, importante notar que o self-preferecing é uma prática comercial e/ou empresarial capaz de configurar uma infração à ordem econômica, independentemente, por conseguinte, do mercado ou do setor econômico em que for adotado.
Repisa-se que uma infração à ordem econômica é, em última análise, um abuso de posição dominante, que pode ser consubstanciado por meio de práticas comerciais e/ou empresariais, em regra, discriminatórias, exclusionárias e/ou predatórias. Essa classificação está alinhada com aquelas adotadas nos principais manuais de Direito Concorrencial ao redor do mundo, como é o caso, por exemplo, do Handbook do Professor Herbert Hovenkamp.2
Inclusive, usando a mesma fonte da professora Ana Sofia Monteiro Signorelli e do colega Guilherme Ornelas Monteiro, o self-preferencing é definido como um abuso de posição dominante capaz de gerar efeitos deletérios à livre concorrência, podendo ser entendido como uma forma de alavancagem – ou seja, uma empresa (ab)usa de sua posição dominante em um mercado para estendê-la a um mercado relacionado (a montante, a jusante ou adjacente).3 Isso ocorre por meio do (ab)uso – discriminatório e/ou exclusionário – do poder de uma empresa no mercado em que ela é dominante para dar um tratamento preferencial ao seu produto ou serviço em um mercado em que ela ainda não detém posição dominante.
Com efeito, o self-preferencing pode ter efeitos exclusionários se, por exemplo, induzir a saída de rivais no mercado que é alvo da alavancagem. Consequentemente, o número de concorrentes em tal mercado cairá, com redução das opções disponíveis e respectiva pressão de aumentos de preços. Ou seja, a conduta de self-preferencing é, de fato, capaz de levar à perda de bem-estar.4 Esse efeito não deve ser desprezado e – novamente – pode ocorrer em qualquer setor de atividade econômica, e não somente em mercados digitais, ainda que, nos últimos tempos, estes tenham ficado em maior evidência.
Em termos jurídicos, os efeitos da prática de self-preferencing podem, portanto, subsumir-se aos incisos do caput do art. 36 da Lei Federal 12.529/2011. E, para que configure uma infração à ordem econômica, basta que tais efeitos sejam potenciais, conforme o caput do art. 36 da mesma Lei.
Portanto, e dado que o self-preferencing é uma conduta unilateral, ele deve ser analisado sob a regra da razão. Nesse sentido, a autoridade antitruste, balizada pelas melhores práticas, deve:
analisar os fatos relativos às práticas comerciais e/ou empresariais por ela identificadas e/ou denunciadas e narradas por terceiros – i.e., analisar quais são os fatos propriamente ditos;
verificar se esses fatos são relativos à matéria concorrencial. Ou seja, se eles envolvem discussões sobre práticas comerciais discriminatórias, exclusionárias e/ou predatórias, além de haver uma teoria do dano à livre concorrência;
avaliar se há evidências, inclusive empíricas, dessas práticas por um agente dominante, independentemente do rótulo que lhes foi especificamente atribuído; e
por último, sopesar se os efeitos líquidos, concretos e/ou potenciais das práticas em questão são negativos à livre concorrência.
Caso o CADE se preocupe, demasiadamente e prima facie, em rotular as práticas em questão, ele corre o risco de sequer analisar as evidências de suas ocorrências e, sobretudo, os seus efeitos.
Isso, por si só, é perigoso, já que pode acabar criando barreiras ou impedindo o pleno exercício da função repressiva da autoridade antitruste, a qual deixaria de analisar as etapas (iii) e (iv) descritas acima e, nesse sentido, de conferir se há efeitos negativos sobre o mercado, que é a verdadeira essência de seu enforcement em face de uma conduta anticompetitiva unilateral.
Tratando-se de matéria concorrencial, não passar pelas etapas (i) a (iv) acima equivaleria a um indesejado “arquivamento per se”. Ou seja, uma conduta que ofende à livre concorrência poderia ser arquivada tão somente em função do nome que se deu a ela, sem a análise de seus efeitos.
Da mesma forma, parece ser apologético buscar determinar se uma certa prática comercial e/ou empresarial só pode configurar uma infração à ordem econômica em determinados mercados relevantes. Aliás, esse entendimento hermético vai de encontro à dinamicidade do mercado corporativo e, consequentemente, limitaria injustificadamente a função repressiva do CADE – o que, conforme visto acima, não foi pretendido pelo legislador brasileiro.
Logo, a busca pela rotulagem de práticas comerciais e/ou empresariais não deve tirar o foco nos seus efeitos em análises por parte de autoridades antitruste, nem mesmo em suas respectivas etapas iniciais. Se for para perder o sono que seja, portanto, em discussões quanto às evidências e aos efeitos de uma conduta anticompetitiva unilateral.
1 FRAZÃO, Ana. Direito da Concorrência: Pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 289.
2 HOVENKAMP, Herbert. Federal Antitrust Policy – The Law of Competition and its practice. 6th ed. St. Paul: West Academic Publishing, 2020.
3 RUSTICHELLI, Roberto. Global Dictionary of Competition Law – Self-preference. Concurrences. Disponível em: https://www.concurrences.com/en/dictionary/self-preference-111802. Acesso em 20 de fev. de 2024.
4 DONNA, Javier D. Rivals’ Exit Should Be Incorporated into the Guidelines for Vertical Merger Evaluation. ProMarket, 2023. Disponível em: https://www.promarket.org/2023/05/22/rivals-exit-should-be-incorporated-into-the-guidelines-for-vertical-merger-evaluation/. Acesso em 20 de fev. de 2024.